Descida aos infernos
"Desço aos infernos, a descer em mim.
Mas agora o meu canto não perfura
O coração da morte,
À procura
Da sombra
Dum amor perdido.
Agora
É o repetido
Aceno do próprio abismo
Que me seduz.
É ele, embriaguez nocturna da vontade,
Que me obriga a sair da claridade
E a caminhar sem luz.
Ergo a voz e mergulho
Dentro do poço,
Neste moço
Heroísmo
Dos poetas,
Que enfrentam confiantes
O interdito
Guardado por gigantes,
Cães vigilantes
Aos portoes do mito.
E entro finalmente
No reino tenebroso
Das minhas trevas.
Quebra-se a lira,
Cessa a melodia;
E um medo triste de vergonha e assombro,
Gela-me o sangue, rio sem nascente,
One o céu, lá do alto se reflecte,
Inútil como a paz que me promete."
Miguel Torga