quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O Comum, Incomum

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Em seu belo A Peste, ganhador do Nobel de literatura de 1957, Camus enuncia uma de suas fortes passagens: “Nenhum amor é bastante forte para expressar-se”. Sendo o amor a expressão de afeto entre duas pessoas, como tal frase seria possível?

Talvez Camus se referia a nenhum amor ser de fato verdadeiro, suficientemente afirmado para se exprimir enquanto amor. Ou também o contrário: há casos nos quais o amor é tão efetivo que, à sua expressão, talvez se prefira o silêncio. Entre o significado aberto nas duas linhas, a frase deixa um jogo de reversibilidades muito produtivo para quem se ocupa, com seus escrúpulos de governar os outros por reduções ad hominem, em interpretar algum eventual orador.

Mas o importante parece ser essa não definição do significado, na distância entre o amante e o amado. Existiria aproximação possível, um amor “bastante forte” para “expressar-se”, sair do emissor e chegar no receptor com a mesma força emotiva? Entre um e outro há algo que se possa chamar de “um mesmo”? Tudo indica, na frase, o quanto numa relação de amor o amante e o amado são “incomensuráveis”, para usar uma palavra empregada por Maurice Blanchot.

E quando duas pessoas se apresentam deliberadamente como amantes? Elas superam esse abismo entre um e outro? Como se faz a passagem entre um e outro?

Certamente um casal de amantes se declarando como tal hoje possui qualidades totalmente diferentes dos casais de 40 anos atrás. Mas, de algum modo, esses de hoje e aqueles de ontem declaram “amar”. Os amantes de hoje “amam” em um plano bem diverso daquele – em um mundo no qual trabalho, moradia, relações de gênero, amizade, família, e até a estabilidade e durabilidade dos vínculos não mais se colocam, na teoria e na prática, nos mesmos termos. Entre os amantes, algo se passa. E esse algo é diferente, caso examinemos nossos avôs, uma peça de Shakespeare, ou nós mesmos.

“Entre” os amantes se passa algo que não pertence a nenhum deles, mas de alguma forma põe o tabuleiro, as peças e as regras do jogo amoroso. Por um lado chamamos esse “algo” de situação, contingência. Nascemos em um mundo onde não detemos todas as regras, mas de algum modo os caminhos não deixam de ser abertos para trilharmos, a favor ou contra elas. Nesse sentido há relativamente uma arte em viver, criar caminhos em um mundo de regras prévias, mas também de trilhas imprevisíveis.

Mas isso não é tudo. Por outro lado, nosso “amor” (vida, vínculos) se põe em um conjunto de regras prévias muito especial, não restrito apenas à constatação de que vivemos em uma “situação” entre outras. Vivemos numa época na qual um dos temas culturais mais nítidos é o fato de que esse “entre”, esse “algo”, nossa “situação” e “regras” não são naturais e podem ser mudadas, reinventadas, refeitas. Como se aquele plano de relações entre as regras dadas e os caminhos imprevisíveis se redobrasse por cima de si mesmo, ocasionando a possibilidade de criar, dentro de um conjunto de regras, outras regras. Espécies de regras, por assim dizer, elevadas a um segundo grau, e assim por diante. Regras essas que, por sua vez, se ocupam exatamente de avançar por sobre aqueles caminhos antes imprevisíveis.

Como se um grande tabuleiro, que não é a linguagem, reclamasse sobre si a própria universalidade da linguagem, colonizando qualquer nova situação (e mesmo os conjuntos culturais de diferentes “situações”), qualquer modo de expressão possível.

É nesse redobramento (ou superdobramento, como diria Deleuze em Sobre a ‘morte do homem’ e o ’super-homem’, ou ainda o controle a céu aberto, no texto sobre as “sociedades de controle“) que se detectam nossos “entre” possíveis. Portanto, esse “entre”, no abismo entre dois indivíduos, pode se colorir em nossa época (essa, das regras avançando sobre qualquer caminho aberto) com diversas nuances. E o efeito é nitidamente duplo: de um lado presenciamos o desvanecimento das relações “tradicionais” e ordinárias; de outro, tem-se uma relativa “customização” individualizante das relações. Para manter o exemplo dos amantes, desvanecem e multiplicam as relações os divórcios, o tema das amásias, os múltiplos casamentos, as casas de swing e assim por diante. Não se trata de dizer que essa multiplicação das relações é “melhor” ou “pior” do que as antigas, isso não está em questão. E sim (para manter o exemplo) como o uso dos prazeres, anteriormente codificados na instituição familiar, agora se codifica e se condiciona a outros traçados igualmente prévios, na criação de todo um aparato de ordem mediática, institucional, jurídica, econômica, e até mesmo de um corpo de expertise desmistificando os amores e enunciando as formas apropriadas de amar.

Algum tempo atrás Frédéric Gros lançou um editorial, em uma revista chamada Raisons Politiques, precisamente sobre a psicologização de nossa cultura. Moscovici já comentava sobre como as noções de Freud, a de “inconsciente” por exemplo, invadiram nosso cotidiano, nosso linguajar ordinário. Mas Gros atualiza a questão. Não é à toa vermos boa parte dos jornais se concentrando em mostrar nós mesmos como o National Geografic mostrava, anos atrás, os animais na savana. As receitas cotidianas de como se comportar “apropriadamente” na situação amorosa ou de emprego são apenas o testemunho mais visível. As neurociências, nesse sentido, ocupam papel privilegiado. Como alertava Georges Canguilhem, é curiosa certa pressa dos diferentes dispositivos cotidianos: tenta-se oferecer, como verdade incontestável, resultados das ciências do cérebro ainda nem consolidados por elas mesmas. Não raramente, em usos cujas ligações com as pesquisas não passam de arbitrárias, embora os efeitos nas condutas das pessoas são bem efetivos. “Como cuidar de seu cérebro” substitui os velhos jargões do “poder do inconsciente”. O cuidado do pesquisador não acompanha alguns interesses, mais ou menos inconfessos, pela sua pesquisa. O século XIX deixou como lembrança o exemplo da moda da frenologia: no fim das contas, todos constataram ser um engodo. Mas isso não impediu toda uma expertise frenológica, enunciando ordenanças na educação e na seleção profissional. A frenologia mostrou ser mito; já as ordenanças enunciadas com base nela, foram bem reais.

Nesse sentido é muito curioso o vínculo entre a expertise, a mídia, e esse movimento das regras “colonizadoras” dos hábitos mais simples. A onda da gripe suína nos ensinou até mesmo a lavar as mãos corretamente. Os jornais chamam especialistas em segurança pública, e também psicólogos, para mostrar como um turista deve se comportar para evitar assaltos em um calçadão de turistas, ou o que um motorista deve fazer para não se estressar em meio ao excesso de carros e falta de fiscalização.

No século passado, Abebe Bikila, um etíope filho de pastores, corria maratonas descalço. Foi ouro em duas olimpíadas. É certo que ainda hoje existem heróis, verdadeiros espíritos inventivos contra qualquer adversidade. Mas nosso mundo nos mostra um outro modelo, o de Michael Phelps, sob o imperativo da especialidade: “equipamentos de alto rendimento”. Abebe Bikila corria descalço; hoje qualquer indivíduo que decide praticar um esporte acha necessário ter diante de si todo o aparato dos atletas de alto rendimento, do equipamento às vestes e até mesmo as opiniões especializadas. Não é um atleta, mas nosso olhar não mente: já começamos a ver algo estranho quando o praticante não utiliza os aparatos de um, mesmo que apenas se resuma a brincar com os filhos.

Ou senão vejamos, correndo no parque, aquele estranho senhor que definitivamente não é esportista: sem camisa, costelas protuberantes à mostra, com calção de futebol anos 80, tênis rasteiro e meião. “Nossa, que biba!”, exclama a gostosa com roupas de academia e o silicone estrategicamente posicionado. Ou a risadinha dos bombados-super-mouse de plantão. Feio e fora de forma, o velho não se codificou como alguém que deveria estar ali. Nem como “velho” ele se portava. Seus trejeitos e roupas eram provável objeto de riso até mesmo para quem a moça imagina como “biba”. Mas ele conservava sua irredutível estranheza ali, apreciando o lago e a brisa.

Quem exige o especialista e o “especializado” é, antes de tudo, nosso próprio olhar. Busca espontânea da situação mais segura (que nada tem a ver com algum perigo efetivo) e o enunciado mais correto nas situações mais triviais, da palavra “correta” para reger nosso conforto conosco e com os outros, e assim por diante.

Não por acaso, para utilizar outro exemplo e avançar no contexto, Peter Lamborn Wilson diferencia o peregrino e o turista. Aqueles encontrados por Heinrich Harrer e Peter Aufschnaiter no caminho a Lhasa, e o peregrino que segue a Gangotori apenas com as vestes do corpo e um surrão, buscam algo irredutivelmente outro ao que procuram os turistas passando de ônibus pelo mesmo lugar. Os flashes das câmeras, disparados nas janelas dos ônibus, servem como verdadeiras armaduras brilhantes, diz Lamborn. Impedem o contato e a permeabilidade a qualquer alteridade.

Alteridade que, quando não experimentada pela estranheza, é afastada pelo medo irracional do perigo. Lembremos a infeliz fatalidade, ocasionada em Babel, do pequeno pastor que alveja à distância uma turista dentro do ônibus, no meio do deserto. Obrigados a parar na vila “terrorista” (no meio do nada, sem recursos hoteleiros), os turistas vivenciam uma ambivalência notável: em primeiro lugar, a exigência de que aquele outro mundo seja o “mesmo”, desempenhe relações codificadas pela prestação de serviços e o comércio (como se no meio do oriente devesse aparecer imediatamente ambulâncias, helicópteros e autoridades); em segundo, o medo generalizado, daquela alteridade “terrorista” de perigos insidiosos. Nessa situação limite, as armaduras brilhates se desfazem.

“Entre” o turista e o local não existe “entre”. O nativo deixa de ser mais um povo exótico, objeto de gosto para exotismos étnicos de consumo descartável. Ele não é mais o carregador de bagagens, o vendedor de lembranças, o velhinho simpático ou o camareiro do hotel. Se antes o afastamento se fazia pelo riso, agora é pelo terror.

Nesse sentido, evocando a questão da alteridade, talvez nos aproximamos um pouco mais da frase inicial de Camus. Vive-se num mundo no qual o “entre”, o preenchimento do abismo entre duas pessoas, colore-se de diversos elementos: em primeiro lugar, um imperativo de inventarmos relações, mas nos recolhermos na segurança de relações já inventadas, reconhecidas paradoxalmente como nosso íntimo, próprio, individual, ídion. Imperativo acompanhando o desvanecimento das antigas relações duráveis (ou mesmo sua persistência sob um novo teor), a multiplicação de novas relações previamente codificadas, e a normalização minuciosa da mais sutil expressão.

No meio desse “entre” circula o “amor” e suas promessas, imaginárias ou efetivas. Mas, nisso tudo, resta amor? Não há como negar que os corpos, ciosos de afetos e afetações, permanecem abertos para romper as distâncias, mesmo que seja a ilusória distância entre eu e mim mesmo – e o outro não sirva a nada mais do que uma projeção imaginária correspondente a um dos temas previamente oferecidos por esse “entre”.

Esse “amor” possibilitado pelas conveniências já oferecidas não consegue ocultar, para tanto, a existência de um outro. Por mais que se avance no imprevisível e se codifiquem as relações, o outro permanece irredutível a mim e às conveniências. As regras de amor dos amantes não são dadas (apenas jogadas) pelos amantes. Igualmente, a minha adoção de um jogo com outro torna duvidoso e incerto o papel a ser jogado pelo outro, pois a referência é sempre a minha adesão ao jogo. Assim, se o jogo não satisfaz minhas exigências, posso recorrer a outro jogo, buscar outros objetos de amor. Mas sei, no fundo, que nunca jogo algum satisfará plenamente essa referência egológica e heteronômica.

O outro (e também “eu” mesmo) abre um leque de contingências irredutível a esses redobramentos de nosso mundo, redobramentos nos quais tentamos colonizar qualquer acaso. Em diversos momentos da vida, cada um constata secretamente: tanto a adesão a essas regras exteriores, quanto a exigência da satisfação própria aderindo a essas regras, não fecham as contingências e não garantem a segurança buscada. Tampouco, garantem um contato verdadeiro.

Daí, talvez, a frase de Camus, enunciada quando a Peste toma conta e todas as relações ordinárias se desfazem. Nenhum amor é bastante forte para expressar-se porque talvez os amantes podem amar por meio dessa tentativa de não apelar às relações ordinárias, significada pelo silêncio. Mas daí também o exemplo do peregrino serve como ensinamento: com as roupas do corpo e o surrão, ele sai de casa sem saber o que encontrará. Tampouco sabe quem ele será no retorno. Saindo de casa o peregrino deixa para trás o corriqueiro, acolhe o acaso, enfim abre-se ao outro. O outro, esse que acolhe o peregrino, também desempenha o papel de um peregrino às avessas. Abertos às contingências, os dois tateiam, buscam ritos, ajustam palavras, suspendem o ordinário. Entre si, ensaiam e criam um espaço comum, como no poema de Paulo Leminski:


santa é a gente
quando lá fora faz frio
e aqui dentro está quente
— entre! digo eu,
hora de ser igual,
hora de ser diferente,
entre você e entre

Texto de Marcio L. M., no Trezentos.

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