domingo, 15 de junho de 2008

Instante

um instante é eternidade
eternidade é o aqui.
quando vês através deste único instante,
és o instante que se vê a si

(Wu Men)

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sexta-feira, 30 de maio de 2008

A procura da Sabedoria



Sem cruzar as portas alheias
ninguém pode saber o que sucede no mundo.
Sem olhar por todas as janelas,
não se pode ver o Céu de Tao.

O mais adiantado corre atrás da sabedoria,
e o mais atrasado é quem a alcança.
Por isso o sábio aprende a correr sem rodopiar,
e compreende tudo sem ver,
atingindo seus fins sem nada fazer

Poema 48 do Tao Te Ching, traduzido por Lin Yutang

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segunda-feira, 19 de maio de 2008

"Aluga-se barraca no cume da montanha"...


Esta semana, aqui no Paraná, ficamos sabendo pela lista de FEMESP, que está ocorrendo reservas de barraca no cume e acampamentos intermediários do Pico Paraná.

- Por Hilton Benke -

Como funciona? A pessoa procura pelo tal "guia",
e acerta com antecedência a viagem do carregador ao cume ou um abrigo intermediário do PP, deixando suas barracas para que este carregue e as deixem montadas, aguardando a chegada de seus donos no outro dia.

Questionei o "guia". Pelo raciocínio dele já imagina a resposta. Como ele não é montanhista, não consegue entender e nem muito menos formalizar uma opinião decente sobre a montanha. Ele imagina que o ambiente de montanha é para ser desfrutado por todos, montanhistas ou não, e que, da mesma forma que um comércio qualquer, deve levar a melhor quem pagar mais.

É a mediocrização definitiva deste impreciso esporte. Um "não montanhista" vendendo o seu parco conhecimento do esporte para "não montanhistas", guiando-os às montanhas.

E a justificativa empregada, é que nas mais altas montanhas da terra isso ocorre. Que no Aconcágua se aluga a barraca montada, com cama, mesa e banho, e a pessoa ainda pode cruzar boa parte do trajeto sentado sobre os lombos das confortáveis mulas de carga. Que no Everest...

Pois é bem este o ponto a chegar. O montanhismo está deixando seu caráter esportivo e tornando-se totalmente turístico. Hotéis e estradas surgem nas bases e cada vez mais o ser humano exerce seu poder sobre a natureza ríspida e fadigosa das montanhas.

Facilidades são implantadas dia após dia. Cordas fixas são colocadas do início ao fim das mais altas montanhas do mundo. No Brasil correntes e escadas retiram o pouco da aventura que um trekking pelas montanhas poderia proporcionar.

E logo, quando as montanhas estiverem sujas e poluídas, com suas encostas rodeadas por casas, hotéis e estradas, quando tudo de bom estiver enfim acabado, estas pessoas simplesmente deixarão de freqüentar estes ambientes "perigosos".

Texto reproduzido de AltaMontanha.com

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domingo, 11 de maio de 2008

Erva da boa



Vamos gervear? O convite pode parecer estranho e mais estranho seria tentar adivinhá-lo. Mas não é nenhuma proposta indecente. Gervear é matear, chimarrear, verdear, amarguear, apertar um mate ou simplesmente tomar um chimarrão. O chimarrão é quase uma religião no Sul do país. Tão ligado ao gaúcho que, quando ele viaja, costuma chegar a uma nova cidade de mala e cuia, literalmente. O mate funciona como um ritual para dentro, da solidão, e, ao mesmo tempo, para fora, da solidariedade. Natural enxergar na cidade de Porto Alegre gente solitária na varanda tomando mate, como quem fuma um cigarro e olha o movimento, ou nos parques, passando a cuia entre os amigos, como quem reparte bolachinha recheada. O músico regionalista Neto Fagundes avisa que isso hoje é uma cena comum. Nem sempre foi assim. A chaleira do campo foi substituída pela térmica, essencialmente urbana, a partir dos anos 70 e 80, com a invasão de jovens do interior para estudar e trabalhar na capital gaúcha. (O escritor Luis Fernando Veríssimo brinca em O Analista de Bagé, sucesso humorístico dos pampas, que o êxodo dos gaúchos iniciou após a invenção da térmica.)

Estimula e tonifica

Diurético, o chimarrão é um concorrente da cafeína. Não se toma chimarrão e café simultaneamente. Um ou outro, alto lá! Se houvesse tarja no mate, estaria escrito atua como estimulante do coração e do sistema nervoso, elimina os estados depressivos e tonifica os músculos contra a fadiga e o cansaço. Não é apenas água e erva, tem complexo B, cálcio, magnésio, sódio, ferro e flúor. Alimenta mesmo, por mais verde e extraterrestre que seja. Na sangrenta Guerra do Paraguai (1864 a 1870), por exemplo, o general Francisco da Rocha Callado conta que o Exército brasileiro alimentou-se exclusivamente de chimarrão durante 22 dias. As pesquisas sobre o chimarrão estão iniciando seriamente agora. Revelam que a bebida tem antioxidantes, também presentes no badalado chá verde (chinês), e que produz um leve efeito contra a coagulação no sangue, como a aspirina, diz o cardiologista Fernando Lucchese.

É compreendido ainda como antídoto do excesso de carne. De acordo com o psicanalista Mário Corso, responde como meio mais eficaz para hidratar e equilibrar o gaúcho, flor de carnívoro, que costuma se atolar nos espetos corridos.

Photobucket

Espécie de chá manso, como define o escritor Luís Augusto Fischer. Propício tanto à reflexão como à roda de amigos. Suas ferramentas são simples, constituídas de cuia (a cabeça do porongo decapitado) e bomba (de prata é a melhor; várias famílias gaúchas têm a peça com bocal de ouro, uma jóia que fica curiosamente na gaveta dos talheres). Retirada da erveira, planta que atinge a altura de 6 a 8 metros e similar a uma laranjeira, a erva-mate cobre dois terços da cuia. Botando menos, é mate comprido. Botando mais, é mate curto. A água a ser posta deve estar quente, não fervida, pois pode queimar a erva e infundir gosto infeliz de pneu queimado. Lição que o francês viajante Saint Hilare, em sua passagem pelo Rio Grande do Sul, em 1820, absorveu: A cuia tem capacidade de mais ou menos um copo, é cheia com erva até a metade, completando-se o resto com água quente. Quando o mate é de boa qualidade, pode-se escaldá-lo até dez ou 12 vezes sem renovar a erva.

Velho de guerra

Deu para perceber a antiguidade do chimarrão. Sua utilização é pré-colombiana, foi alimento básico dos índios guaranis, teve o desenvolvimento de sua cultura pelos jesuítas da Companhia de Jesus, que transformaram a erva em comércio e exportação de 1610 a 1768. Chegou a servir como pagamento, o que fez significar cheio de erva como cheio de grana.

Aos observadores incrédulos, deve-se concluir que não há mistério, é beber e pronto. Ledo engano. O chimarrão é um tabuleiro, com regras, educação e simpatias. Convide os colegas para jogar. O que errar está desclassificado. Não se pede um mate, o mate é oferecido. Uma forma de converter um estranho em amigo. É uma deferência e sinal de respeito. O tradicionalista Glênio Fagundes estabelece uma comparação muito bonita no livro Cevando Mate. A roda de chimarrão evoca o moinho de vento, ponto de encontro para perguntar ao interlocutor quem ele é, de onde vem, o que quer, quando vai?

Cuidado: não se entrega o mate ou se recebe com a mão esquerda. Ao se enganar, diga: Desculpe a mão! Só o cevador (o preparador do mate) tem a licença para arrumar e mexer na erva. Não adianta fuçar a bomba ou ajeitála por conta própria, mesmo que o chimarrão esteja entupido e não saia nada mais que ar. Devolva ao dono que ele arruma. O primeiro a tomar é também sempre o que fez. Para mostrar que está bom e, de modo nenhum, envenenado (risos). O segundo mate partirá para o mais velho ou alguém a se prestar uma homenagem. A cuia segue no sentido anti-horário, do lado direito (o lado do laçar) em diante, de volta ao cevador. Perderá pontos, isso é importante, se você não roncar a cuia. É preciso tomar a água até o final, senão é descortesia. Não agradeça na hipótese de continuar na roda. É entendido como uma despedida ou pior um jeito polido de dizer que o mate não estava agradável, provavelmente frio e com a erva lavada. Não obstrua o ritmo do círculo, ficando com a cuia à maneira de um copo vazio à espera do garçom.

Nem tudo é flor de erva. Em Fatos e Mitos sobre sua Saúde, o cardiologista Fernando Lucchese sugere a quebra de um dos mais sagrados mandamentos da cultura gaudéria em nome da higiene e prevenção. Sua observação se refere à mania da cuia de circular de boca em boca. Seria preciso lavar o bocal com a própria água quente. Basta um participante ter herpes labial, que transmitirá aos demais.

Conforme Lucchese, o chimarrão pode causar gastrite e esofagite, pela composição da erva ácida e água quente. Está relacionado ao câncer de lábio, esôfago e de língua. Na década de 70, cidades fronteiriças do Rio Grande do Sul mostraram alta incidência desses casos em comparação às taxas do país. A garrafa térmica novamente ela! diminuiu os riscos.

Além do ritual se prestar para rodadas animadas de papo, fofocas e conversas postas em dia, é um ato de reflexão e um mergulho na serenidade. Nenhum demérito preparar o mate sozinho. Pelo contrário, o verdadeiro mateador é o que não depende de estímulos externos e visitas. É uma hora para botar as idéias no lugar, refletir sobre o que foi feito no dia anterior, fazer a pauta do dia que se descortina, uma hora para pensar calmamente, para ter aquela paz sem a qual não entendemos as coisas nem criamos nada, avalia Corso.

Tradição passional, o chimarrão é como uma prova de iniciação, de batismo de fogo aos interessados em ingressar na cultura gaúcha ou recuperar espaços dentro de si. Atividade dos extremos, à semelhança de um Grenal (Grêmio versus Inter), está carregada de exageros e superstições. Os que não partilham o costume sentem uma ponta de culpa e se penalizam. Um exemplo é o escritor Luis Fernando Veríssimo. No alto de sua reputação unânime, confessa: Acredite ou não, não sei que gosto tem chimarrão. Concordo, eu deveria ser expulso do estado.

Texto reproduzido do Vida Simples, da autoria de Fabricio Carpinejar.

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terça-feira, 6 de maio de 2008

O Peregrino Russo



por Jean Gauvain

Foi na Biblioteca das Línguas Orientais, em Paris, que eu descobri este livro, graças a uma pequena nota de Nicolas Berdiaev. Apesar da pressa por causa do período de exames, eu não larguei dele até à noite. De fato, mais que muitos romances, estudos e ensaios, ele revela o mistério do povo russo naquilo que há de mais secreto: suas crenças e sua fé.

Não é de espantar a obscuridade em que permaneceram os Relatos de um Peregrino quando se pensa em que condições foram publicados. Apareceram pela primeira vez em Kazan, por volta de 1865, sob uma forma primitiva, com muitos erros. Foi somente em 1884 que se estabeleceu uma edição correta e acessível. Em pleno movimento socialista e naturalista, essa edição não poderia ter muita repercussão.

Somente após 1920, quando o coração de certos emigrados russos sentiu a nostalgia da pátria, surgiu a necessidade de uma nova edição. O livro foi reimpresso por iniciativa do professor Vycheslavtsev[4] . A presente tradução foi feita a partir desse texto.

Os Relatos foram publicados sem nome do autor. De acordo com o prefácio da edição de 1884, o
padre Paísius, abade do mosteiro de São Miguel Arcanjo, em Kazan, teria copiado o texto de um monge russo de Athos, cujo nome ignoramos. Numerosos indícios nos fazem crer que os relatos foram redigidos por um religioso depois de suas entrevistas com o peregrino. Esta hipótese, porém, não afeta o caráter de autenticidade do livro. O peregrino, simples camponês de trinta e três anos, só está familiarizado com o estilo oral. A redação de suas aventuras lhe teria custado imensos esforços; expressões convencionais teriam substituído a linguagem arcaica e simples que faz o encanto de seus relatos.

Por outro lado, um confidente inteligente terá podido reencontrar exatamente o tom do peregrino e transmitir ao leitor as suas palavras. Muitos místicos só comunicaram sua experiência espiritual com a ajuda de um cronista, cuja suprema arte consiste em apagar-se diante dos mistérios que revela. Este personagem talvez seja o eremita de Athos, ou talvez ainda o padre Ambrósio, o grande solitário de Optina — mestre de Ivan Kireevski, amigo de Dostoievsk, de Tolstoi e Leontiev — em cujos manuscritos foram encontrados três outros relatos [5] de tom mais didático, publicados em 1911.

Os Relatos estariam assim relacionados ao movimento literário russo do século XIX, naquilo que tem de mais sereno e puro. Em meio ao tumulto dos escritos poéticos, romanescos, revolucionários, em que se chocam com violência as tendências radicais do caráter russo, faltava essa nota inocente e cristalina que é, sem dúvida, a tônica secreta.

O peregrino faz o leitor penetrar no coração da vida russa, pouco depois da guerra da Criméia e antes da abolição da escravatura, ou seja, entre 1856 e 1861. Por ele passam todos os personagens do romance russo: o príncipe que procura expiar sua vida dissipada, o chefe do correio, beberrão e briguento, o escrivão da província, incrédulo e liberal. Os forçados partem, em penosas etapas, para a Sibéria; os correios imperiais extenuam seus cavalos na planície imensa; os desertores rondam pelas florestas longínquas; nobres, camponeses, funcionários, membros das seitas, professores e padres, toda essa antiga Rússia de estrutura rural ressuscita com seus defeitos — dos quais a embriaguez não é certamente o menor — e suas qualidades, entre as quais a mais bela é a caridade, o amor espiritual ao próximo, iluminado pelo amor de Deus.

Ao redor, é a terra russa, planície imensa a perder de vista, florestas desertas, hospedarias à beira das estradas, igrejas pintadinhas de novo, com sinos que cintilam. Entretanto, o camponês não se detém jamais para descrever as aparências sensíveis. Cristão ortodoxo, ele está à procura da perfeição, sua única preocupação é o absoluto.

Para guiá-lo em sua busca, o peregrino tem apenas dois livros: a Bíblia e uma coletânea de textos patrísticos, a Filocalia. Este nome é o único meio de se definir a escola à qual ele está ligado. Russo do século XIX, ele é um hesicasta (de ºFLP4": palavra que significa: calma, silêncio, contemplação).

O hesicasmo remonta aos primeiros séculos cristãos. Tem suas origens no Monte Sinai e no deserto do Egito. Na Igreja Oriental, aparece como a corrente mística que se opõe à tradição puramente ascética, originária de São Basílio, que dominou por muito tempo, após a condenação da doutrina de Orígenes nos séculos V e VI.

A mística oriental, inspirada em Orígenes e Gregório de Nisa [6], atribui à alma humana, como sua finalidade, a deificação. A natureza humana é boa, mas deformada pelo pecado. O caminho da salvação consiste em devolvê-la à sua virtude primitiva, restabelecer no homem — que é a imagem de Deus — a semelhança divina, obra da graça. Sob a ação da graça, o espírito — libertado das paixões pela ascese — se eleva para contemplar as razões das coisas criadas e chega, às vezes, até a chamada "nuvem luminosa": a contemplação obscura da Santíssima Trindade.

Tal é a meta à qual se consagram os solitários e os grandes místicos dos dez primeiros séculos do
cristianismo. Para fixar o espírito nas realidades invisíveis, alguns deles foram levados a adotar processos técnicos como a repetição freqüente de uma curta oração: o Kyrie Eleison
[7]. Os católicos, que estão familiarizados com a recitação do terço, não se admirariam por isso. A idéia de uma participação do corpo na vida espiritual, que está ligada ao dogma da ressurreição futura, é em si mesma profundamente ortodoxa. Foi assim que, pouco a pouco, se desenvolveu, através de controvérsias acirradas, a doutrina que será qualificada como hesicasmo.

A partir do século XI, essa doutrina tende a corromper-se. Sob a influência indireta de São Simeão, o Novo Teólogo, um valor exagerado é atribuído às visões e revelações sensíveis. Ninguém poderá ser considerado cristão se não tiver conhecido e experimentado concretamente a graça. Esta é uma teologia inquietante, à qual se opõem as palavras de Joana d'Arc aos doutores que lhe perguntavam se ela estava em estado de graça: — Se não estou, que Deus nele me coloque e, se nele estou, que Deus nele me conservei Além disso, o cristão não pode ir sem perigo. A ação de Deus na alma é essencialmente misteriosa, "transpsicológica", para retomar a expressão de Stolz[8].

A procura das iluminações, com efeito, leva a desprezar a prática ascética e a buscar meios considerados mais eficazes para chegar às visões. Trata-se do perigo do "meio curto" e do quietismo, onde a alma se arrisca a ser fulminada. Por uma evolução paralela, dá-se uma atenção demasiada aos processos corporais, à postura do corpo, ao papel do coração na oração. O hesicasta do século XIV, que espera chegar à salvação "sem esforço e sem dor", esquece que, na vida espiritual, tudo é graça e que ninguém pode dizer: Jesus é Senhor, a não ser no Espírito Santo (1 Cor 12,3).

É essa doutrina que, apesar das controvérsias do século XIV, é transmitida à Rússia pelo staretz ou monge Nil Sorski (1433-1508), uma das figuras mais puras do monaquismo russo, aquele que queria proibir aos conventos a posse de bens materiais. Ela caiu no esquecimento, mas foi restaurada por um outro monge, Paísius Velitchkovski, no fim do século XVIII. Os textos hesicastas, que ele reúne e publica em 1794, vão guiar os solitários e os místicos russos do século XIX.

Comprometido na monótona cadeia de gerações, o peregrino encontra a doutrina do hesicasmo tal qual a deformaram os longos séculos de história. Mas sua espiritualidade é pura. Se, por momentos, ele parece acreditar que a prática da oração basta para levá-lo a conhecer "como o Senhor é bom", seu amor de Deus é grande demais para não ser de origem sobrenatural. O ascetismo quase espontâneo da sua vida não deixa também de servir-lhe de guarda. Andando sempre de um lugar para outro, não tendo sequer uma pedra onde repousar a cabeça, a oração perpétua é para ele, antes de tudo, um meio para fixar a atenção sobre o mistério da fé e fazer a alma voltar-se para si mesma. Seu espírito permanece sempre ativo e sua fé é iluminada por uma busca ardente e sincera.

A fé do peregrino não é uma respeitosa emoção diante de mistérios de poesia, ela se alimenta de
ensinamentos teológicos. Aos que se lhe dirigem, oferece conselhos técnicos e explicações da doutrina, e não exortações generosas e vagas. Conhecendo o homem à luz de Deus, ele conhece também seu lugar e seu papel no universo.

A moral do peregrino não é um conjunto de regras que um dia aprendeu. Não é também apenas uma higiene interior. Todas as suas ações são orientadas pelo desejo de perfeição espiritual. O ascetismo é condição de contemplação. Não tem sentido em si mesmo. Assim, a vida espiritual retoma sua unidade. Da fé procedem as obras, mas, sem as obras não há fé. Vindo do mundo da queda, da ignorância e da fraqueza, o peregrino caminha para a nova Jerusalém, na qual entrará por inteiro, corpo e alma, na consumação dos séculos. Reunindo todas as forças de seu espírito para contemplar o Ser Absoluto, ele recebe, às vezes, de Cristo, o novo Adão, alguns dos privilégios do primeiro Adão. Ele chega a ignorar o frio, a fome, a dor; até a própria natureza lhe parece transfigurada:

"Árvores, ervas, pássaros, terra, ar, luz, tudo me dizia que tudo existe para o homem, que tudo testemunha o amor de Deus pelo homem, tudo reza, tudo canta a glória de Deus".

Esse otimismo que liberta não é um privilegio cristão. É a tendência profunda do cristianismo. Que a criação seja boa e que, depois da queda, ela deva ser englobada inteiramente na via da salvação, disto Santo Agostinho e, depois dele, os grandes doutores medievais, não duvidam mais que São Gregório de Nisa. Se a Idade Média no Ocidente está mais ligada sobretudo ao mistério do pecado e da Cruz, é porque as maravilhosas implicações da Encarnação já foram reveladas à consciência cristã pelos Padres da Igreja. Foram somente as crises e as rupturas do mundo moderno que obscureceram esse senso "cósmico" da teologia patrística, sem o qual não se pode compreender o pensamento dos grandes doutores do Ocidente.

É a essas perspectivas tão amplas que o peregrino pode levar aqueles que o escutam com sinceridade. Será isso roubar-lhe seu caráter russo? De maneira alguma, ao contrário. Pois ele é um perfeito tipo da piedade russa. Esta não formou uma escola de pensamento, uma doutrina própria. Como um ícone de Novgorod, de cores vivas e fortes, que renova os modelos recebidos de Bizâncio, a piedade russa deu, às doutrinas do Oriente cristão, um tom original e novo.

O senso inato do mistério do homem, a compaixão, a piedade diante da dor e do pecado, a simplicidade de coração que purifica espontaneamente as doutrinas da Idade Média bizantina, a imitação direta e a quase mímica da vida de Cristo e das verdades evangélicas — tais são os traços fundamentais da piedade russa.

Existe assim na Rússia um imenso potencial religioso, uma poderosa força popular que não chegou a exprimir-se em uma doutrina própria. Até ao século XIX não existe uma teologia russa: tudo é traduzido, decalcado do grego ou, secundariamente, do latim. Com exceção talvez da Idade Média russa, a fusão, a síntese entre o pensamento religioso e a corrente da piedade popular só aconteceu em casos individuais, de que o peregrino é um exemplo. Na vida da Igreja, essa ausência de unidade confere à idéia religiosa russa seu caráter trágico, fonte de crises violentas. Abandonada a si mesma, a Igreja russa logo veio a conhecer a ingerência do Estado. Por falta de apoio, ela sucumbiu, o cisma despedaçou-a, ela se desfez pouco a pouco. Nas florestas em que se erguera a meditação solitária de Nil Sorski, acendem-se no século XVII as trágicas fogueiras dos Velhos-Crentes. A torça espiritual se refugia nos eremitérios, nos monastérios junto aos monges; ela se irradia às vezes para o povo, mas a unidade orgânica está esfacelada. Os gigantescos esforços dos leigos para criar, no século XVIII, uma doutrina religiosa russa, se apóiam apenas em uma realidade difusa, falta-lhes solidez e permanecem isolados. De certo a alma russa permanece sobretudo religiosa. Mas à fé sucede a religiosidade sobre a qual nascem terríveis abscessos de fanatismo obscuro, de niilismo total, de ateísmo militante, potência das trevas!

Voltado para o absoluto, por uma misteriosa vocação, o povo russo — como todos os povos da
Europa — falhou à sua missão histórica, a de uma civilização progressivamente impregnada pela
Verdade, em um equilíbrio ativo entre os abismos do pecado e a infinita graça divina. A visão de uma Rússia que reconciliaria o Oriente com o Ocidente, por um instante entrevista por Soloviev, parece ter desaparecido para sempre. Mas um bem infinito pode nascer de um mal radical. É no temor e no tremor que se prepara a ressurreição.

"Chora, chora, povo miserável", canta o Inocente de Mussorgski, esse irmão do peregrino, "chora, povo faminto, Deus terá pena de ti".

Genebra, Festa da Ressurreição do Senhor, 25 de abril de 1943

***

A invocação do nome de Jesus de acorod com a fórmula "Senhor Jesus Cristo tende piedade de mim um pecador" (freqüentemente conhecida como "a Prece de Jesus" - Kyrie Eleison) tem desempenhado um papel central na vida espiritual do Oriente Cristão. A prática da oração (euche) e os efeitos que tem sobre os crentes têm sido descritos em muitos textos e tratados por séculos, notadamente na Philokalia. Entretanto, o poder da oração para efetivar uma transformação interior (e mesmo exterior) é melhor conhecido através de uma coleção popular de estórias sobre um peregrino anônimo da Rússia do século XIX, intitulado O Relato do Peregrino, ou O Caminho do Peregrino.

Pesquisas recentes esclarecem que história deste texto, que foi bem conhecido na Rússia até a década de 1880 e foi traduzido em muitos outras línguas européias no século XX. O núcleo das quatro estórias originais sobre o peregrino foi composto por volta de 1859 pelo Padre Mikhail Kozlov (1826-1884), nesta época monge em Athos e mais tarde missionário na Sibéria. A primeira edição foi publicada em 1881 por Paisii Federov. Edições posteriores adicionaram três novas estorias e muitas camadas ao texto., à maneira típica da literatura espiritual russa. O caráter relaxado da narrativa da obra torna difícil dar um sentido a sua atração e poder através de excertos.

***
O fragmento acima é de Bernard McGinn, e pertence a uma coletânea sobre a história do Peregrino Russo. A Introdução de Jean Gauvain também pertence à mesma referência.

No endereço da coletânea podem ser encontradas várias edições do livro do Peregrino, em português e espanhol.

A imagem acima pertence a Russia - The Story of a Russian Pilgrim.

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segunda-feira, 5 de maio de 2008

Meses e dias...

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"Meses e dias são viajantes da eternidade. O ano que se vai e o que se vem também são viajantes. Para aqueles que deixam flutuar suas vidas a bordo dos barcos ou envelhecem conduzindo cavalos, todo dia é dia de viagem. Sua própria casa é viagem."

"Days and months are the travellers of eternity. So are the years that pass by. Those who steer a boat across the sea, or drive a horse over the earth till they succumb to the weight of years, spend every minute of their lives travelling. There are a great number of the ancients, too, who died on the road. I myself have been tempted for a long time by the cloud-moving wind- filled with a strong desire to wander."

- Matsuo Bashô -


Reproduzido do blog "Catatau"

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domingo, 4 de maio de 2008

"Regras" para peregrinar, segundo Matsuo Bashô




"Regras" para peregrinar, segundo o poeta japonês Matsuo Bashô ;)

1 - Não durma duas vezes no mesmo lugar. Queira sempre um colchão que você ainda não tenha esquentado.

2 - Roupas e utensílios devem estar de acordo com o que a gente precisa. Nem muitos, nem poucos.

3 - Não mostre seus versos, se não for solicitado. Solicitado, nunca recuse.

4 - Não se torne íntimo com mulheres que praticam o haikai. Não é bom nem para o mestre nem para a discípula. Se ela for séria sobre o haikai, ensine-a através de um intermediário. O dever ods homens e das mulheres é a produção de herdeiros. Dissipação impede a riqueza e a unidade da mente.
O caminho do haikai começa na concentração e na falta de distração. Olhe bem para dentro de si mesmo.

5 - Seja grato até àquele que lhe ensinou uma simples palavra. Não tente ensinar até ter entendido tudo. Ensinar é para quem já está perfeito.

6 - Para dizer o sabor do coração, precisa agonizar dias e dias.

LEMINSKI, P. Matsuó Bashô: A lágrima do peixe. SP: Brasiliense, 1983 (p. 62-63). Reproduzido do blog Catatau.

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sábado, 3 de maio de 2008

Romeiros e turistas no santuário de Bom Jesus da Lapa

por Carlos Alberto Steil

Os dados que registramos ao longo do trabalho de campo são uma fonte quase inesgotável para a nossa reflexão antropológica. Sempre que voltamos ao caderno de campo e aos registros documentais sobre nosso universo de pesquisa somos levados a novas intuições e a novos objetos. Mesmo porque, se é verdade, como diz Geertz, que "os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças), mas nas aldeias" (1989, p. 32), então as possíveis escolhas em relação aos objetos são inúmeras. Assim, na medida em que nos afastamos no tempo em relação ao trabalho de campo, outras possibilidades de ordenamento do material coletado surgem no nosso horizonte, apontando para outros significados dentro da teia de sentidos que os agentes da romaria de Bom Jesus da Lapa estão tecendo através de seus rituais, suas falas, seus escritos e suas ações.
A relação entre peregrinação e turismo é um destes objetos que hoje percebo como um ponto de interseção nodal, onde se pode verificar a tensão entre múltiplos significados que são postos em risco nos locais de peregrinação e turismo religioso. Embora esse tema tivesse surgido com certa freqüência no discurso dos informantes e na "literatura nativa", no livro O Sertão das Romarias, que resultou do trabalho de pesquisa que deu origem à minha tese de doutorado, faço apenas algumas poucas considerações sobre a relação entre turismo e peregrinação (Steil, 1996). Por isso pretendo, neste artigo, revisitar os dados recolhidos no campo, destacando os discursos e práticas em que o turismo aparece como uma categoria significativa para alguns romeiros, para os moradores de Bom Jesus da Lapa e para o clero expressarem suas experiências.
Turismo e peregrinação serão tomados aqui como categorias que condensam duas estruturas de significados que estão sendo "atualizadas" e reavaliadas nesse evento1. Portanto, não se trata de traçar uma linha divisória entre romeiros e turistas. Mesmo porque, quando observamos as pessoas que acorrem ao santuário no período da romaria, nos damos conta de que romeiros e turistas se confundem tanto em relação às suas motivações quanto aos seus comportamentos2. Noutras palavras, a análise dos comportamentos ou das motivações não nos oferece indicadores capazes de demarcarem uma linha de fronteira entre turistas e peregrinos. Ou seja, observarmos que existe uma miscelânea de atos religiosos e turísticos praticados pela mesma pessoa, de modo que se torna muito difícil saber se estamos diante de um turista ou de um romeiro. A última coisa em que se poderia pensar seria numa divisão que tomasse critérios como de frivolidade para o turismo e de seriedade para a romaria. Os estudos sobre peregrinações de um modo geral enfatizam a dimensão festiva e orgiástica como constitutiva desse fenômeno. Por outro lado, os trabalhos sobre turismo destacam os elementos de seriedade que normalmente acompanham essa prática3
A análise que fazemos dos peregrinos, por sua vez, aponta para uma tensão interna e permanente entre duas estruturas de significados no culto das romarias, que estariam apontando para idealizações opostas, ou "tipos ideais", no sentido weberiano, do que seria uma verdadeira peregrinação. De um lado temos o modelo convivial de uma comunidade emocional e religiosa, que Victor Turner e Edith Turner chamaram de communitas (1978)4; de outro, temos o modelo da sociedade de corte, marcado por uma convivência "fria e calculada", que poderia ser expresso pela idéia de societas, da forma como a entende Norbert Elias (1995)5. Nesse sentido, tomamos a romaria como um discurso metassocial que comporta duas formas de sociabilidade que operam a partir de lógicas opostas: da communitas, para a qual a verdadeira sociedade seria expressa pelo ideal fraterno da comunhão; e da societas, onde a regra básica de funcionamento da sociedade estaria na distinção.
A peregrinação como ideal de comunhão fusional



O ideal da communitas poderia ser expresso pela busca de uma comunhão fusional, onde a romaria surge como um espaço simbólico que ab-roga as regras sociais, as hierarquias e os constrangimentos morais6. Enfatiza o caráter festivo, lúdico e transgressivo da peregrinação, que incorpora o divertimento, o sexo, o comércio, a dança, a diversidade religiosa como dimensões do culto. Exerce, desse modo, uma crítica à sociabilidade do cotidiano e à vida moderna que se organiza a partir da divisão social do trabalho e de múltiplos status sociais que estabelecem regras rígidas de comportamentos e hierarquias7.

Esse ideal de solidariedade, horizontalidade e igualdade nas relações entre os romeiros aparece com freqüência em suas falas e práticas. Para aqueles que chegam a Lapa depois de longas horas de viagem sobre a carroceria de um caminhão pau-de-arara, onde se misturam adultos, crianças, sacolas de alimentos, apetrechos de cozinha, colchões e esteiras de dormir, a experiência relatada é de uma comunhão que transcende o cotidiano marcado por regras estabelecidas, compromissos pessoais, posições sociais, constrangimentos morais, etc. Como se pode perceber nas falas que seguem:
Quando a gente prepara uma viagem desta, não tem separação.
Todo mundo é irmão, todo mundo é amigo. Tem que ser assim.
A mesma experiência se estende para os dois ou três dias que os romeiros permanecem na Lapa, como se pode ver noutro depoimento que recolhemos em campo:
Aqui nós estamos acampados, arranchados, levando vida de cigano. A gente dorme nas esteiras, no chão, na poeira. Cozinha, faz trempe de pedra, põe as panelas em cima. Não precisa colher, não precisa talher. Quanto mais humilde melhor. Porque romeiro só é romeiro se ele ficar assim, na poeira, mostrando sofrimento. Mas quem vem de ônibus, fica em hotel, de boemia... Está certo, cada qual agradece a Deus como pode, mas eu acho que é um romeiro muito especializado. Romeiro tem que ser pobre.
Essa crítica às etiquetas relacionadas com o uso de talheres, as regras de higiene e a preparação dos alimentos pode ser vista como uma forma de contestação a um tipo de sociabilidade gerada pelo processo civilizador moderno que está associado à divisão do trabalho, aos múltiplos status sociais e à necessidade das elites burguesas de se distanciar, através de uma diferenciação de comportamento, em relação à massa pobre dos camponeses e operários.
O ideal turístico na romaria

Ao lado dessa busca de comunhão fusional, encontramos também o ideal de uma romaria que deveria se pautar pela ordem, organização, higiene, conforto e moderação. Ou seja, uma romaria moldada pelo imaginário turístico a ser alcançado através de uma ação pedagógica e educativa que visa a transformação do comportamento e da mentalidade dos romeiros.
Embora se possa encontrar esse ideário turístico entre muitos romeiros que freqüentam o santuário, duas categorias de agentes o incorporaram mais especificamente: os moradores da Lapa e o clero. De modo que, enquanto para os primeiros o ideal de uma transformação da romaria se dá sem contradição, no sentido da afirmação da Lapa como um sítio turístico e um local de lazer, para o clero a escolha entre o ideal peregrínico e o turístico é extremamente conflitiva. Podemos ver nesses posicionamentos a disputa por dois legados deixados pelo monge fundador do santuário: o espiritual e o material. Se entre os moradores prevalece a reivindicação do legado material, para o clero trata-se de salvar a "religiosidade e a fé dos romeiros" sem perder a hegemonia sobre os negócios e a arrecadação financeira que a romaria realiza.
Romeiros-turistas

Os romeiros-turistas diferenciam-se dos romeiros tradicionais não apenas por sua aparência, seu modo de vestir, sua postura, sua ideologia religiosa, sua visão de mundo, mas sobretudo pelas estruturas de significados dentro das quais inserem sua experiência. Para essa nova categoria de romeiros, a romaria em si, com suas expressões cúlticas, seu misticismo, sua religiosidade se torna uma curiosidade ou um aspecto pitoresco a ser observado. Sua presença no santuário se justificaria por razões que transcendem aquelas que mobilizariam os romeiros tradicionais. Embora dentro do evento, procuram estabelecer uma exterioridade e um distanciamento em relação à massa dos romeiros, fazendo emergir, desse modo, um "nós" que se confronta com um "eles". Essa tomada de distância simbólica, que já vimos acontecer entre os moradores, aqui também trabalha no sentido de transformar as nuances em contraste, na medida em toma as diferenças relativas como se fossem absolutas.
Quando perguntamos aos romeiros-turistas quais as motivações que os levam a deslocar-se para a Lapa no período da romaria, percorrendo centenas ou mesmo milhares de quilômetros em seus carros particulares ou em ônibus confortáveis, as respostas mais recorrentes são as de que a romaria fornece-lhes uma ocasião ímpar para "admirar a fé do povo". Ou seja, já não se trata de peregrinar em busca de uma experiência pessoal da communitas, mas de se colocar como um observador externo, na qualidade de turista, frente a uma experiência vivenciada por outros e que se torna objeto de admiração8. Mesmo desvalorizada socialmente, no âmbito da sociedade moderna secularizada e da experiência religiosa dos romeiros-turistas, os atributos da religiosidade e do misticismo tradicionais são considerados como constitutivos de uma autêntica "fé católica", que teria perdido muito de sua autenticidade a partir do processo de racionalização que passou a dominar o campo da religião.
Esses romeiros-turistas manifestam, portanto, uma certa exterioridade em relação ao ideal de comunhão partilhado pela grande maioria dos peregrinos. Estes formam hoje uma nova categoria de romeiros, que se dirigem ao santuário por motivações que devem ser remetidas mais a uma estrutura de significados próprios ao universo laico das viagens do século XIX do que ao universo místico das peregrinações. Suas atitudes e falas apontam para uma experiência que busca atualizar, nesse contexto específico, uma forma de sociabilidade que se estrutura dentro do universo de uma cultura turística9.
Constata-se que aquilo que os romeiros tradicionais vão buscar na romaria não é necessariamente o mesmo que mobiliza os romeiros-turistas. Enquanto os primeiros buscam a realização da communitas, que lhes permitiria reencontrar um "tempo coletivo" e realizar – para usar um conceito de Durkheim – a passagem imaginária de uma solidariedade orgânica para uma solidariedade mecânica, os romeiros-turistas buscam um reencontro com a "fé pura", vivida pela massa indiferenciada de romeiros. Para estes, trata-se de uma volta a algo nostálgico, visto desde fora, o qual não estaria mais ao seu alcance, enquanto se consideram letrados e diferentes, uma vez que se posicionam no fluxo de um processo de secularização racionalizadora10.
A romaria é vista, nessa perspectiva, como uma forma de "sobrevência" de um mundo idílico, que projeta para dentro da crise contemporânea uma imagem de permanência e estabilidade. Mas, também, um mundo onde se pode tomar contato com os valores e sentidos que a sociedade industrial e urbana acredita ter perdido, ou ao menos, esquecido. Através de um deslocamento no espaço, os romeiros-turistas idealizam o encontro com seu "mito de origem" ou com uma espécie de "paraíso perdido". A nostalgia da "fé pura" toma forma e contornos na communitas, vivenciada pelos romeiros tradicionais diante dos quais se sentem exteriores. Esse estranhamento se constitui num mecanismo pelo qual os romeiros-turistas demarcam uma diferença que não se encontra apenas na ordem do espaço ou do tempo, mas sobretudo na ordem social.
Os moradores da Lapa e o legado material da romaria

Para aqueles que habitam a cidade da Lapa como o seu mundo secular e que retiram seu sustento das atividades relacionadas com empreendimentos turísticos e comerciais desenvolvidos em torno da romaria, as "mudanças que vêm ocorrendo na mentalidade dos romeiros por força da época", como se expressava um morador, são vistas com muita simpatia. A afirmação de uma romaria ideal, que se institui a partir de regras de diferenciação e externalidade em relação ao misticismo religioso, é a principal fonte de legitimação do discurso e das práticas dos moradores.
Seu olhar sobre os romeiros já deixa transparecer este processo simbólico que procura tomar distância em relação a um significado da romaria que se realizaria numa communitas fusional. Como afirmava um morador, "a fé dos romeiros é diferente da nossa. Eles vão mais nas águas do milagre". Ao mesmo tempo, outro morador reconhecia que "os romeiros estão se conscientizando. Já não há tanto fetichismo. Hoje é mais autêntico. O primitivismo está acabando". Os moradores estão, na verdade, explorando a possibilidade de mudar a romaria, mudando a representação que a apreende como um evento utópico, mítico e "encantado". Seu enunciado é performático, no sentido de uma ação que visa fazer advir o que anuncia pelo fato de o anunciar11. Contribuem, assim, para a realidade do anunciado, tornando concebível e crível um novo senso comum sobre a romaria, em ruptura com a perspectiva mística que os peregrinos procuram imprimir ao evento.
Ao se diferenciar dos romeiros, os moradores trabalham no sentido de diluir a mística fusional através da construção de uma visão desmistificadora do evento. Acionam, assim, um discurso da consciência e da ciência para estabelecer um outro programa de percepção, que visa desautorizar os sentidos construídos sob o modelo de relações "encantadas". Como afirma Bourdieu (1988), sob a aparência de descrever o fato social ou de denunciar os desvios de perspectiva, prescrevem e anunciam uma outra estrutura significativa. Num contexto moderno, os sentidos produzidos sob o modelo de relações "encantadas" são particularmente vulneráveis à ação destrutiva de palavras que desvendam as formas míticas de compreensão da realidade e de relacionamento com a divindade.
Os moradores procuram anular a narrativa tradicional sobre a romaria não apenas manifestando seu discenso em relação aos sentidos construídos a partir da dimensão mítica do evento, mas, sobretudo, inserindo a romaria numa outra estrutura significativa que já possui um reconhecimento coletivo. Para isso, deslocam as categorias próprias do turismo para dentro do campo religioso, autorizando assim a negação da communitas como o sentido ideal da romaria. Ao apresentar a passagem da communitas para societas como um processo natural, os moradores da Lapa estão, na verdade, autorizando-se a transformar a romaria num grande evento turístico.
O clero: entre dois legados

Em relação ao clero, registramos uma tentativa de reformulação do culto através da integração dos romeiros numa sociabilidade turística. No pequeno livro, escrito em 1969 e reeditado em 1988 pelos dirigentes do santuário, intitulado Guia dos Romeiros e Turistas de Bom Jesus da Lapa. Histórico e Curiosidades do Santuário e da Cidade (grifo meu), podemos ver que as categorias de romeiros e turistas não são apenas contrapostas, mas a segunda é sobreposta à primeira (Kocik, 1988)12. Vemos, assim, uma tentativa de absorver o sentido e o ideário peregrínico numa estrutura de significados e categorias lingüísticas que remetem ao campo turístico, que é levada a cabo pelos próprios dirigentes do santuário.
O santuário é apresentado nesse opúsculo não mais como um espaço sagrado teofânico, mas como um lugar turístico onde se pode encontrar inúmeras curiosidades. A sua forma e o seu estilo literário nos remetem para os folhetos e informativos turísticos. Na análise que foi feita desse documento em O Sertão das Romarias destaquei que a mudança de linguagem já significava em si mesma uma mudança do conteúdo significativo da mensagem. E que, ao invés de uma ação direta de repressão ao culto, os padres agiam sobre as representações que os romeiros faziam da romaria (Steil, 1996).
Essa ação dos padres sobre os sentidos da romaria, no entanto, só se torna eficaz na medida em que essas representações turísticas atualizam um núcleo de significados referido a um período de longa duração, no sentido dado por Braudel (1980), de códigos culturais ou de um sistema de signos e normas que configuram a ação humana. A hipótese que vimos trabalhando, portanto, é de que a conformação da romaria ao turismo atualiza um modelo comportamental de afirmação do indivíduo que encontramos noutros domínios da vida contemporânea, e que se contrapõe a uma sociabilidade que opera por uma fusão das consciências.
A atitude do clero não apenas revela o conflito entre dois núcleos de significados que demarcam uma divisão central em relação aos sentidos da romaria, mas também aponta para uma situação paradoxal ou de "duplo constrangimento" (Bateson, 1972) que oscila entre a idealização e a reprovação dos romeiros e turistas. Ou seja, ao lado do ideal de uma religião esclarecida, racionalizada e teológica existe o ideal de uma "fé pura", não contaminada pela modernidade, pela secularização e pelo racionalismo. Enquanto a peregrinação remete ao primeiro ideal, o turismo aponta para o segundo.
Mais do que os moradores e, possivelmente, que os próprios romeiros-turistas, o clero se encontra dividido entre o ideal da communitas e o da societas. Movido pelo primeiro, é tomado por uma atitude de profunda admiração pelos romeiros. Já, movido pelo segundo, reprova a ignorância religiosa e o caráter supersticioso de suas práticas no santuário. Como se expressava um importante dirigente local: "o povo (romeiros) é religioso, mas ao mesmo tempo é supersticioso. É religioso, mas não tem formação religiosa. Na romaria de Bom Jesus a gente vê que esse povo tem uma ligação muito grande com Deus, mas ao mesmo tempo não tem uma formação autêntica cristã".
A idealização da religião dos romeiros é utilizada como um antídoto contra os constrangimentos da modernidade e a concorrência religiosa. Trata-se da busca nostálgica de uma religião popular idealizada que se articula com uma idéia romântica da natureza13. Como se expressa o mesmo dirigente citado acima: "o povo não tem formação, mas guarda a fé por uma necessidade natural". Mas, ao mesmo tempo, o clero valoriza a formação como parte de sua missão civilizadora. O santuário é definido como um ponto privilegiado de evangelização e de libertação. Pode-se ver aqui uma oscilação entre estes dois modelos idealizados de sociabilidade: um natural (de comunhão), que se constitui sem a mediação do dogma e da teologia; e outro civilizado (de diferenciação), fruto de um trabalho de aprimoramento da natureza, onde se introduz o código, o contrato e as etiquetas sociais.
Conclusão

As representações que buscam afirmar a romaria como um evento turístico não podem ser tomadas simplesmente como o resultado "natural" de um processo de racionalização ou como o resíduo da ação modernizadora da religião católica. Elas estão, na verdade, referidas à dinâmica das próprias peregrinações que se constituem, segundo Eade e Sallnow, como uma espécie de "vazio religioso, capaz de acomodar sentidos e práticas diversas" (Eade; Sallnow, 1991, p. 15, tradução minha). De modo que uma lógica de comunhão não apenas coexiste com uma lógica diferencial no comportamento dos romeiros e turistas, mas ambas estabelecem entre si um jogo dentro do qual se definem os pertencimentos religiosos e as identidades sociais. Nesse sentido, o ritual da romaria opera uma espécie de união dos contrários onde as duas lógicas se articulam, sem que uma exclua a outra. Portanto, mais do que lamentar tal transformação, qualificando-a como uma espécie e degradação da prática religiosa ou de rejeição da tradição, trata-se de tomar as representações turísticas sobre o evento como constitutivas de uma outra tradição, de caráter profano e moderno, que também se constitui como uma lógica interna das práticas de peregrinação.
O eixo comum dessa articulação pode ser encontrado no fato de que o turismo e a peregrinação são vividos como o inverso da vida cotidiana14. O turismo, assim como a peregrinação, está na ordem do lazer, do ócio15. Tanto num como no outro, observa-se a busca de uma sociabilidade ideal. Mas enquanto a peregrinação busca uma dissolução simbólica do indivíduo num todo holístico, o turismo opera a partir de um corte social eletivo que procura estabelecer ilhas de sociabilidade através da demarcação de fronteiras entre um "eles" e um "nós". De modo que, se a peregrinação visa integrar numa sociedade global, o turismo, num sentido ideal típico, visa integrar numa sociedade particular, onde se torna possível experimentar o "outro" (a alteridade), para melhor apreender a si mesmo.
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O artigo foi reproduzido do Scielo. As referências bibliográficas, e notas de fim, podem ser encontradas lá. Referência completa:

STEIL, Carlos Alberto. Romeiros e turistas no santuário de Bom Jesus da Lapa. Horiz. antropol. [online]. 2003, vol. 9, no. 20 [cited 2008-05-01], pp. 249-261
As fotos seguem as referências: 1, 2 e 3

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sexta-feira, 2 de maio de 2008

Kailash Kora


imagem daqui


imagem daqui


imagem daqui

Outras imagens aqui.

A segunda imagem, acima, retrata o início da peregrinação ao Monte Kailash, no Tibet. Parafraseio, acrescentando outros elementos:

Começo da Kora ao redor do Kailash ("Kora" é o caminho sagrado ao redor da montanha)

Aberto um século atrás, o Monte Kailash (6.658m) é cercado de mistério. A mais sagrada das montanhas sagradas era então apenas um mito para o mundo exterior. Assumida como permanecendo em algum lugar entre as vastas terras da China e o subcontinente indiano, ela permanecia escondida na terra perdida do Tibet. Para os tibetanos ela é Gangkar Ti Se ou Gang Rimpoche (Preciosa Montanha de Neve), e é reverenciada não apenas por budistas, mas também por milhões de hindús, jansenistas e seguidores de outras fés tradicionais.

Não se considerava escalar a montanha, por seu significado religioso. A primeira permissão para escalar foi dada a Reinhold Messner (1985), que pediu permissão para visitar as áreas circundantes. Mas ele não escalou. Desde que não foi dada outra permissão, alpinistas como Jesús Martinez Novaz planejaram uma expedição para uma "demonstração política contra degradação ambiental e por um alargamento da consciência global". Isso levou a protestos em escala mundial, de diferentes grupos de religiões, apoiados por famosos alpinistas, que rejeitavam a subida do Kailash.

Diz-se que a montanha foi escalada apenas no século XI, por um espiritualista e poeta tibetano chamado Milarepa.

Outros informes, aqui, aqui, aqui,

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quinta-feira, 1 de maio de 2008

Peregrino, Gangotori

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A foto acima, com créditos de Kevin Kelly, retrata um peregrino hindú no caminho para a fonte de Gangotori, na Índia. Trata-se de uma das fontes do sagrado rio Ganges. O peregrino viaja durante dias na neve. Na bagagem, apenas o que se vê na foto.

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quarta-feira, 30 de abril de 2008

Superando o Turismo



por Hakim Bey

Nos Velhos Dias o turismo não existia. Ciganos, Tinkers1 e outros nômades de verdade até hoje vagam por seus mundos à vontade, mas ninguém iria por isso pensar em chamá-los de "turistas".
O turismo é uma invenção do século 19 – um período da história que algumas vezes parece ter se alongado em uma duração não natural. De várias formas, nós ainda estamos vivendo no século 19.

O turista procura Cultura porquê – no nosso mundo – a cultura desapareceu no bucho do Espetáculo, a cultura foi destruída e substituída por um shopping ou um talk-show – porquê a nossa educação é nada mais que a preparação para uma vida inteira de trabalho e consumo – porquê nós mesmos cessamos de criar. Embora os turistas pareçam estar fisicamente presentes na Natureza ou na Cultura, na verdade pode-se chamá-los de fantasmas assombrando ruínas, sem nenhuma presença corpórea. Eles não estão lá de verdade, mas sim movem-se por uma paisagem mental, uma abstração ("Natureza", "Cultura"), coletando imagens mais que experiência. Muito freqüentemente suas férias são passadas em meio à miséria de outras pessoas e até somam-se a essa miséria.

Recentemente algumas pessoas foram assassinadas no Egito só por serem turistas. Contemple... o Futuro. Turismo e terrorismo – qual é mesmo a diferença?

Das três razões arcaicas para viagens – chamemos elas "guerra", "troca" e "peregrinação" – qual deu à luz o turismo? Alguns responderiam automaticamente que deve ser a peregrinação. O peregrino vai "lá" para ver, o peregrino normalmente traz na volta algum souvenir; o peregrino "dá um tempo" na vida diária; o peregrino tem objetivos não-materiais. Assim, o peregrino antecipa o turista.

Mas o peregrino passa por uma mudança na consciência, e para o peregrino essa mudança é real. Peregrinação é uma forma de iniciação, e iniciação é uma abertura para outras formas de cognição.

Podemos detectar algo da diferença entre o peregrino e o turista, contudo, comparando seus efeitos nos lugares que visitam. Mudanças em um local – uma cidade, um santuário, uma floresta – podem ser sutis, mas pelo menos podem ser observadas. O estado da alma pode ser uma questão de conjectura, mas talvez possamos dizer algo sobre o estado do (aspecto) social.

Locais de peregrinação como Meca podem servir como grandes bazares para troca. E eles podem até servir como grandes centros de produção, (como a indústria da seda em Benares) – mas seu "produto" primário é baraka, ou maria. Essas palavras (uma árabe, outra polinésia) são usualmente traduzidas como "benção", mas elas também levam uma carga de outros significados.
O dervixe errante que dorme em um santuário para sonhar com um santo morto (um do "Povo das Tumbas") procura iniciação ou avanço no caminho espiritual; uma mãe que leva uma criança doente a Lurdes procura cura; uma mulher sem filhos no Marrocos espera que o Marabout 2 a torne fértil se ela amarrar um trapo na velha árvore que cresce sobre a cova; o viajante para Meca anseia pelo próprio centro da Fé, e quando a Cidade Sagrada entra no campo de visão das caravanas o hajji entoa "Labbaika Allabumma!" – "Eu estou aqui, Ó Senhor!"

Todos esses motivos são reunidos pela palavra baraka, que às vezes parece ser uma substância palpável, mensurável em termos de aumento de carisma ou "sorte". O santuário produz baraka. E o peregrino leva embora. Mas benção é um produto da Imaginação – e assim não importa quantos peregrinos levem-na embora, sempre há mais. Na verdade, quanto mais eles levam, mais benção o santuário pode produzir (pois um santuário popular cresce com cada prece atendida).

Dizer que baraka é "imaginária" não é chamá-la de "irreal". Ela é real o bastante para aqueles que a sentem. Mas bens espirituais não seguem as regras de oferta e demanda como os bens materiais. Quanto maior a demanda por bens espirituais, maior a oferta. A produção de baraka é infinita.

Em contraste, o turista não deseja baraka, mas diferença cultural. O peregrino – podemos dizer – deixa o "espaço secular" do lar e viaja para o "espaço sagrado" do santuário para experimentar a diferença entre "secular" e "sagrado". Mas essa diferença permanece intangível, sutil, invisível ao olhar "profano", espiritual, imaginária. A diferença cultural, contudo, é mensurável, aparente, visível, material, econômica, social.

A imaginação do "primeiro mundo" capitalista está exaurida. Ela não pode imaginar nada diferente. Então o turista deixa o espaço homogêneo do "lar" pelo espaço heterogêneo dos "climas estrangeiros" não para receber uma "benção", mas simplesmente para admirar o pitoresco, a mera visão ou instantâneo da diferença, para ver a diferença.

O turista consome diferença.

Mas a produção de diferença cultural não é infinita. Ela não é "meramente" imaginária. Tem raízes na linguagem, paisagem, arquitetura, costume, gosto, cheiro. É muito física. Quanto mais ela é desgastada ou levada embora, menos sobra. O social pode produzir só certa quantia de "significado", só certa quantia de diferença. Quando ela acaba, acaba.

No decorrer dos séculos, talvez, um dado lugar sagrado tenha atraído milhões de peregrinos – e ainda assim, de algum modo, apesar de toda a contemplação e admiração e reza e compra de souvenirs – o lugar reteve seu significado. E agora – depois de 20 ou 30 anos de turismo – esse significado se perdeu. Aonde ele foi? Como isso aconteceu?

As verdadeiras raízes do turismo não se encontram na peregrinação (ou mesmo na troca "justa"), mas na guerra. Estupro e pilhagem foram as formas originais de turismo, ou melhor, os primeiros turistas seguiram diretamente rumo à agitação da guerra, como urubus humanos procurando em meio à carniça do campo de batalha por um butim imaginário – por imagens.

O turismo surgiu como um sintoma de um Imperialismo que era total – econômico, político e espiritual.

O que é realmente incrível é que tão poucos turistas tenham sido assassinados por tal mísero punhado de terroristas. Talvez uma cumplicidade secreta exista entre esses reflexos opostos. Ambos são gente sem lugar, soltos de todas as âncoras, à deriva num mar de imagens. O ato terrorista exista apenas na imagem do ato – sem a CNN, sobrevive apenas um espasmo de crueldade sem sentido. E os atos do turista existem apenas nas imagens desse ato, os instantâneos e souvenirs; de outro modo nada resta a não ser as cobranças em cartas de companhias de cartão de crédito e um resíduo de "milhas grátis" de alguma companhia aérea em colapso. O terrorista e o turista são talvez os mais alienados de todos os produtos do capitalismo pós-imperial. Um abismo de imagens os separa dos objetos de seu desejo. De uma forma estranha, eles são gêmeos.

Nada nunca realmente toca a vida de um turista. Todo ato do turista é mediado. Qualquer um que já tenha estemunhado uma falange de americanos ou japoneses que encheriam um ônibus avançando sobre alguma ruína ou ritual deve ter notado que até o olhar coletivo deles é mediado pelo meio do olho multi-facetado da câmera, e que a multiplicidade de câmeras, videocâmeras e gravadores forma um complexo de brilhantes e clicantes escamas em uma armadura de mediação pura. Nada orgânico penetra essa carapaça insetóide que serve tanto como casca protetora quanto como mandíbula predadora, abocanhando imagens, imagens, imagens. No seu extremo essa mediação toma a forma do passeio guiado, em que toda imagem é interpretada por um especialista licenciado, um condutor de almas ou guia dos Mortos, um Virgílio virtual no Inferno da ausência de sentido – um funcionário menor do Discurso Central e sua metafísica da apropriação – um cafetão de êxtases não-corpóreos.

O verdadeiro espaço do turista não é a locação do exótico, mas sim o lugar-sem-lugar (literalmente a "utopia") do espaço mediano, espaço limiar, entre-espaço – o espaço da própria viagem, a abstração industrial do aeroporto, ou a dimensão maquinal do avião ou ônibus.

Então o turista e o terrorista – esses fantasmas gêmeos dos aeroportos da abstração – sofrem uma fome idêntica pelo autêntico. Mas o autêntico se retira sempre que eles se aproximam. Câmeras e armas ficam no caminho daquele momento de amor que é o sonho escondido de todo terrorista e turista. Para sua miséria secreta, tudo o que eles podem fazer é destruir. O turista destrói significado, e o terrorista destrói o turista.

O turismo é a apoteose e a quintessência do "Fetichismo da Mercadoria". É o Cargo Cult3 definitivo – a adoração de "bens" que nunca chegarão, porque foram exaltados, elevados à glória, deificados, adorados e absorvidos, tudo no plano do espírito puro, além do fedor da mortalidade (ou moralidade).

Você compra turismo – você leva nada além de imagens. Turismo, como a Realidade Virtual, é uma forma de Gnose, de desprezo-ao-corpo e transcendência do corpo. A "viagem" turística definitiva terá lugar no Cyberespaço, e será CyberGnose – uma ida e volta ao parinirvana no conforto de sua própria "central de trabalho". Pluga aí, deixa a Terra pra trás!

O modesto objetivo desse livrinho é se dirigir ao viajante individual que decidiu resistir ao turismo.

Ainda que no fim nós descubramos ser impossível "purificar" nós mesmos e nossa viagem de toda mancha e traço do turismo, ainda sentimos que uma melhora pode ser possível.

Nós não apenas desdenhamos o turismo por sua vulgaridade e sua injustiça, e por isso desejamos evitar qualquer contaminação (consciente ou inconsciente) por sua virulência viral – nós também ousamos entender a viagem como um ato de reciprocidade mais que de alienação. Em outras palavras, nós não desejamos meramente evitar as negatividades do turismo, mas ainda mais atingir a viagem positiva, que visualizamos como uma relação produtiva e mutuamente aperfeiçoadora entre eu e outro, hóspede e anfitrião – uma forma de sinergia inter-cultural em que o todo excede a soma das partes.

Nós gostaríamos de saber se a viagem pode ser realizada de acordo com uma economia secreta de baraka, de acordo com a qual não apenas o templo mas também os peregrinos tenham "bençãos" a aspergir.

Antes da Era da Mercadoria, nós sabemos, houve uma Era do Presente, da reciprocidade, do dar e receber. Nós aprendemos isso dos contos de certos viajantes, que encontraram restos do mundo do Presente entre certas tribos, na forma de potlach4 ou trocas rituais, e resgistraram suas observações de práticas tão estranhas.

Não há muito tempo atrás ainda existia um costume entre ilhéus do Mar do Sul de viajar vastas distâncias por canoas apoiadas por bóias, sem compasso ou sextante, com o fim de trocar presentes valiosos e inúteis (objetos de arte cerimoniais ricos em mana) de ilha a ilha num padrão complexo de reciprocidades sobrepostas.

Suspeitamos que muito embora a viagem no mundo moderno parece ter sido apropriada pela Mercadoria – muito embora as redes de reciprocidade convivial pareçam ter sumido do mapa – muito embora o turismo pareça ter vencido – ainda assim – nós continuamos a suspeitar que outros caminhos ainda persistem, outras estradas, não-oficiais, não marcadas no mapa, talvez até mesmo "secretas" – caminhos ainda ligados à possibilidade de uma economia do Presente, rotas de contrabandistas para espíritos livres, conhecidos apenas pelas guerrilhas geomânticas5 da arte da viagem.

Na verdade, nós não apenas "suspeitamos" disso. Nós sabemos disso. Nós sabemos que existe uma arte da viagem.

Talvez os maiores e mais sutis praticantes da arte da viagem tenham sido os sufis, os místicos do Islã. Antes da era dos passaportes, imunizações, linhas aéreas e outros impedimentos à viagem livre, os sufis perambulavam descalços em um mundo onde fronteiras tendiam a ser mais permeáveis que hoje em dia, graças ao transnacionalismo do Islã e à unidade cultural do Dar al-Islam, o mundo islâmico.

Os grandes viajantes islâmicos medievais, como Ibn Battuta e Naser Khusraw, deixaram registros de várias jornadas – da Pérsia ao Egito, ou mesmo do Marrocos à China – que nunca saíam de uma paisagem de desertos, camelos, praças de caravana, bazares, e diligência. Alguém sempre falava árabe, embora mal, e a cultura islâmica permeava os mais remotos lugarejos, embora superficialmente. Ler os contos de Sinbad o Marujo (das 1001 Noites) nos dá a impressão de um mundo onde até a terra incognita era estática – apesar de todas as maravilhas e estranhezas – de algum modo familiar, de algum modo islâmica. Dentro dessa unidade, que ainda não era uma uniformidade, os sufis formavam uma classe especial de viajantes. Não guerreiros, não mercadores, e não muito bem peregrinos ordinários também, os dervixes representam a espiritualização do nomadismo puro.

De acordo com o Corão, a Grande Terra de Deus e tudo nela são "sagrados", não apenas como criações divinas mas também porquê o mundo material está cheio de "indicadores", ou sinais de realidade divina. Ainda mais, o próprio Islã nasce entre duas jornadas , a hijra de Maomé (ou "vôo" de Meca a Medina) e sua hajj, ou viagem de volta. A hajj é o movimento em direção à origem e centro para cada muçulmano até hoje, e a peregrinação anual tem cumprido papel vital não apenas na unidade religiosa do Islã, mas também em sua unidade cultural.

O próprio Maomé exemplifica cada tipo de viagem no Islã: – sua juventude com as caravanas do Verão e do Inverno, de Meca, como mercador; suas campanhas como guerreiro, seu triunfo como um humilde peregrino. Embora um líder urbano, ele também é o profeta do beduíno e ele mesmo é um tipo de nômade, um "hóspede temporário6" – um "órfão". Dessa perspectiva a viagem quase pode ser vista como um sacramento. Toda religião santifica a viagem em algum grau, mas o Islã é virtualmente inimaginável sem ela.

O Profeta disse: "Procure o conhecimento, mesmo longe como a China". Desde o início o Islã eleva a viagem sobre todo o utilitarismo "mundano" e dá a ela uma dimensão epistemológica ou até mesmo gnóstica. "A jóia que nunca deixa a mina nunca é polida", diz o sufi Saadi. "Educar" é "indicar a saída", dar ao pupilo uma perspectiva além da paroquialidade e mera subjetividade.

Alguns sufis podem ter feito todas as suas viagens no Mundo Imaginário dos sonhos arquetípicos e visões, mas um grande número deles tomou as exortações do Profeta bem literalmente. Até hoje dervixes perambulam por todo o mundo islâmico – mas até o século 19 eles perambulavam em verdadeiras hordas, centenas ou até milhares de uma vez, e cobriam vastas distâncias. Todos em busca de conhecimento.

Extra-oficialmente existiam dois tipos básicos de perambulação sufi: o tipo "cavalheiro-acadêmico", e o dervixe mendicante. A primeira categoria inclui Ibn Battuta (que colecionou iniciações sufi da forma que alguns cavalheiros ocidentais já colecionaram graus maçônicos); e – num nível muito mais sério – o "Maior Xeque" Ibn Arabi, que circulou lentamente pelo século 13 de sua nativa Espanha através do norte da África, pelo Egito até Meca e finalmente até Damasco.
Na verdade Ibn Arabi deixou registros de sua procura por santos e aventureiros na estrada, que puderam ser coletados de seus volumosos escritos para formar um tipo de rihla, ou "texto de viagem" (um gênero reconhecido da literatura islâmica), ou autobiografia. Acadêmicos comuns viajaram à procura de textos raros sobre teologia ou jurisprudência, mas Ibn Arabi procurou apenas os mais altos segredos do esotericismo e as mais elevadas "aberturas" para o mundo da iluminação divina; para ele toda "jornada aos horizontes exteriores" era também uma "jornada aos horizontes interiores" da psicologia espiritual a da gnose.

Das visões que experimentou em Meca, apenas, ele escreveu um trabalho de 12 volumes (As revelações de Meca), e também deixou esboços preciosos de centenas de seus contemporâneos, dos maiores filósofos da época a humildes dervixes e "loucos", mulheres anônimas, santos e "Mestres Escondidos". Ibn Arabi gozou de uma relação especial com Khzer, o imortal e desconhecido profeta, o "Homem Verde", que algumas vezes aparece para sufis andarilhos em dificuldade, para resgatá-los do deserto ou para iniciá-los. Khzer, de certa maneira, pode ser chamado de santo padroeiro dos dervixes viajantes – e seu protótipo. (Ele apareceu pela primeira vez no Corão como um andarilho misterioso e companheiro de Moisés no deserto.)

O Cristianismo já incluiu umas poucas ordens de mendicantes andarilhos (de fato, São Francisco organizou uma depois de encontrar com dervixes na Terra Sagrada, que podem tê-lo presenteado com uma "túnica de iniciação" – a famosa túnica de retalhos que ele usava quando voltou à Itália) -, mas o Islã gerou dúzias, talvez centenas dessas ordens.

Enquanto o Sufismo cristalisava da frouxa espontaneidade dos primeiros dias para uma instituição com regras e graus, a "viagem por conhecimento" também foi regularizada e organizada. Manuais elaborados de deveres para dervixes foram produzidos, incluindo métodos para tornar a viagem numa forma de meditação muito específica. Todo o próprio "caminho" sufi foi simbolizado em termos de uma viagem intencional.

Em alguns casos itinerários eram fixados (por exemplo, a Hajj); outros envolviam espera pela aprição de "sinais", coincidências, intuições, "aventuras" como aquelas que inspiraram as viagem dos cavaleiros arturianos. Algumas ordens limitavam o tempo gasto em um lugar a 40 dias; outras fizeram uma regra de nunca dormir duas vezes no mesmo lugar. As ordens severas, como a dos Naqshbandis, transformaram a viagem em um tipo de coreografia em tempo integral, na qual todo movimento era pré-ordenado e feito para aperfeiçoar a consciência.

Em contraste, as orden mais heterodoxas (como a dos Qalandars) adotaram uma "regra" de total espontaneidade e abandono – "desemprego permanente", como um deles chamava – uma distração de poporções boêmias – um "cair fora" ao mesmo tempo escandaloso e completamente tradicional. Vestidos de maneira colorida, carregando suas tigelas de esmola, machados e estandartes, devotos da música e da dança, despreocupados e alegres (algumas vezes ao ponto de serem dignos de repreensão!), ordens como a dos Nematollahis da Pérsia do século 19 cresceram a proporções que alarmaram sultões e teólogos – muitos dervixes foram executados por "heresia". Hoje os verdadeiros Qalandars sobrevivem principalmente na Índia, onde seus desligamentos da ortodoxia incluem a apreciação pela maconha e o sincero ódio ao trabalho. Alguns são charlatães, alguns são simplesmente mendigos – mas um número surpreendente deles parece ser gente de sucesso... como posso colocar isso?... gente de auto-realização, marcada por uma distinta aura de graça, ou baraka.

Todos os tipos diferentes de sub viagem que descrevemos são unidos por certas forças estruturais e vitais compartilhadas. Tal força pode ser chamada de uma visão de mundo "mágica", uma percepção da vida que rejeita o "meramente" aleatório em favor de uma realidade de sinais e maravilhas, de coincidências cheias de significado e "descobertas". E qualquer um que já tenha experimentado isso testemunhará, a viagem intencional imediatamente expõe uma pessoa a essa influência "mágica".

Um psicólogo poderia explicar esse fenômeno (com adoração ou com desdém reducionista) como "subjetivo", enquanto o crente pio o tomaria como literal. Do ponto de vista do Sol nenhuma interpretação domina a outra, nem é suficiente em si mesma, para explicar as maravilhas do Caminho. No sufismo, o "objetivo" e o "subjetivo" não são considerados opostos, mas complementos. Do ponto de vista do pensador bi-dimensional (científico ou religioso) tal paradoxo cheira a proibido.

Outra força subjacente a todas as formas de viagem intencional pode ser descrita pela palavra árabe adab. Em um nível adab significa simplesmente "boas maneiras", e no caso de viagem essas maneiras são baseadas nos costumes antigos dos nômades do deserto, para quem perambulação e hospitalidade são atos sagrados. Nesse sentido o dervixe comparilha tanto os privilégios quanto as responsabilidades do hóspede.

A hospitalidade beduína é uma nítida sobrevivente da economia primordial do Presente – uma relação de reciprocidade. O andarilho deve ser aceito (o dervixe deve ser alimentado) – mas por isso o andarilho assume o papel prescrito pelo costume antigo – e deve dar algo em troca ao anfitrião. Para o beduíno essa relação é quase uma forma de clientagem: – o partir do pão e a partilha do sal constituem uma forma de relação familiar. Gratidão não é uma reação suficiente a tal generosidade. O viajante deve consentir em uma adoção temporária – menos que isso seria uma ofensa ao adab.

A sociedade islâmica retém no mínimo uma ligação sentimental com essas regras, e por isso cria um nicho especial para o dervixe, o do hóspede em tempo integral. O dervixe retribui o presente da sociedade com o presente da baraka. Na peregrinação comum o viajante recebe baraka de um lugar, mas o dervixe reverte o fluxo e traz baraka a um lugar. O sufi pode pensar em si mesmo (ou si mesma) como um peregrino permanente – mas para o povo comum e caseiro do mundo cotidiano o sufi é um tipo de santuário (per)ambulante.

Agora o turismo em sua própria estrutura quebra a reciprocidade entre anfitrião e hóspede. Em inglês, um "hospedeiro" (host) pode ter hóspedes – ou parasitas. O turista é um parasita – pois nenhuma quantia de dinheiro pode pagar por hospitalidade. O verdadeiro viajante é um hóspede e por isso serve a uma função muito real, até hoje, em sociedades nas quais ideais de hospitalidade ainda não desapareceram da "mentalidade coletiva". Ser um anfitrião, nessas sociedades, é um ato meritório. Então, ser um hóspede é também conferir mérito.

O viajante moderno que "pega" o espírito simples dessa relação será perdoado dos muitos lapsos no intrincado ritual do adab (Quantas xícaras de café? Onde se põe os pés? Como ser divertido? Como demonstrar gratidão?, etc), peculiar a uma cultura específica. E se alguém se der ao trabalho de dominar algumas das formas tradicionais do adab, e empregá-las com sinceridade vinda do coração, então tanto hóspede como anfitrião ganharão mais do que colocaram na relação, e esse mais é o sinal inconfundível da presença do Presente.

Outro nível de significado da palavra "adab" a conecta com cultura (já que cultura pode ser vista como a soma de todas as "maneiras" e costumes); na utilização moderna o Departamento de "Artes e Letras" em uma Universidade seria chamado de Adabiyyat. Ter adab, nesse sentido, é ser "polido" (como aquela gema bem viajada) -, mas isso não tem nada a ver necessariamente com "belas artes" ou com ser letrado, ou com ser um urbanóide ou mesmo "culto". É uma questão do "coração".

"Adab" é algumas vezes usado como uma definição-em-uma-palavra para cisma. Mas modos insinceros (ta'arof, em persa) e cultura insincera são igualmente evitados pelos sufi – "Não há ta'arof no Tasssawuf (Sufismo)", como os dervixes dizem; "Darvishi" é um adjetivo sinonímico para informalidade, a qualidade relaxada do povo do Coração – e para adab espontâneo, por assim dizer. Os verdeiros hóspedes e anfitriões nunca fazem um esforço óbvio para cumprir as "regras" da reciprocidade – eles podem seguir o ritual criteriosamente ou podem mudar os modos criativamente, mas em qualquer caso eles darão a suas ações uma profunda sinceridade quem se manisfesta como graça natural. "Adab" é um tipo de amor.

Um complemento dessa "técnica" (ou "Zen") das relações humanas pode ser encontrado na maneira dos sufi de se relacionar com o mundo em geral. O mundo "cotidiano" – da falsidade social e negatividade, das emoções usurárias, da consciência inautêntica ("mauvaise conscience"), grosseria, má vontade, desatenção, reação impulsiva, falso espetáculo, discurso vazio, etc, etc – tudo isso não mais guarda interesse para o dervixe viajante. Mas aqueles que dizem que o dervixe abandonou "esse mundo" – a "Grande Terra de Deus" – estão enganados.

O dervixe não é um gnóstico dualista que odeia a biosfera (que certamente inclui a imaginação e as emoções, assim como a própria "matéria"). Os primeiros muçulmanos ascetas certamente se fecharam para tudo. Quando Rabiah, a santa de Basra, foi convocada para sair de sua casa e "testemunhar as maravilhas das criações de Deus", ela respondeu: "Venham para dentro da casa e vejam-nas", isto é, venham para dentro do coração da contemplação, da unidade que está acima da pluralidade da realidade. "Contração" e "Expansão" são ambos termos sufi para estados espirituais. Rabiah estava manifestando a Contração: um tipo sagrado de melancolia que foi metaforizado como a "Caravana do Inverno", do retorno à Meca (o centro, o coração), da inferioridade e do ascetismo ou auto-negação. Ela não era uma dualista que odiava o mundo, nem mesmo uma puritana moralista inimiga da carne. Ela estava simplesmente manifestando um certo tipo de graça específica.

O dervixe viajante, contudo, manifesta um estado mais típico do Islã em suas energias mais exuberantes. Ele de fato procura a Expansão, alegria espiritual baseada na verdadeira multiplicidade da generosidade divina na criação material. (Ibn Arabi tem uma divertida "prova" de que esse mundo é o melhor mundo – pois, se não fosse, então Deus não seria generoso – o que é absurdo. Q.E.D.7) De modo a apreciar os múltiplos indicadores da Grande Terra precisamente como o desenvolvimento dessa generosidade, o sufi cultiva o que pode ser chamado de olhar teofânico: – a abertura do "Olho do Coração" às experiências de certos lugares, objetos, pessoas, eventos, como locações da passagem do brilho da Luz divina.

O dervixe viaja, por assim dizer, tanto no mundo material como no "Mundo da Imaginação", simultaneamente. Mas para o olho do coração esses mundos se interpenetram em alguns pontos. Pode-se dizer que eles se revelam ou "desvelam" mutuamente. No fim, eles são "um" – e só nosso stado de desatenção hipnotizada, nossa consciência mundana, nos impede de experimentar essa identidade "profunda" a todo momento. O propósito da viagem intencional, com suas "aventuras" e seu desenraizamento de hábitos, é arrebatar o dervixe de todos os efeitos hipnóticos da ordinariedade. A viagem, em outras palavras, é para induzir um certo estado de consciência, ou "estado espiritual" – o da Expansão.

Para o andarilho, cada pessoa que se encontra age como um "anjo", cada templo que se visita pode destrancar algum sonho iniciático, cada experiência da Natureza pode vibrar com a presnça de algum "espírito ou lugar". De fato, até o mundano e ordinário pode de repente ser visto como elevado (como no grande haiku de viagem do poeta Zen japonês Bashô) – um rosto na multidão ou uma estação de trem, corvos em fios telefônicos, brilho do sol em uma poça...

Obviamente ele não precisa viajar para experimentar esse estado. Mas a viagem pode ser usada – isto é, uma arte da viagem pode ser adquirida – para maximizar as chances de atingir tal estado. É uma meditação em movimento, como as artes marciais taoístas. A Caravana do Verão seguia em frente, para fora de Meca, para as ricas tradições da Síria e do Iêmen. Do mesmo modo o dervixe está "movendo-se para fora" (é sempre "dia da mudança"), indo para a frente, partindo, em "feriado perpétuo", como um poeta expressou, com um Coração aberto, um olho atento (e outros sentidos), um desejo por significado, uma sede de conhecimento. Deve-se ficar alerta, já que qualquer coisa pode de repente revelar-se como um sinal. Isso soa como um tipo de "paranóia" – embora "metanóia" talvez seja um termo melhor – e de fato encontra-se "loucos" entre os dervixes, "os atraídos", inundados por influxos divinos, perdidos na Luz. No Oriente os insanos são cuidados e admirados como santos indefesos, porque a "doença mental" algumas vezes pode aparecer como um sintoma de muita santidade mais que de pouca "razão". A popularidade da maconha entre os dervixes pode ser atribuída ao seu poder de induzir um tipo de atenção intuitiva que constitui uma insanidade controlada: – metanóia herbal. Mas a viagem em si pode intoxicar o coração com a beleza da presença teofânica. É uma questão de prática – o polimento da jóia -, de remoção do musgo da pedra rolante.

Nos velhos dias (que ainda estão acontecendo em algumas partes remotas do Leste) o Islã pensava em si mesmo como um mundo inteiro, um mundo vasto, um espaço com grande latitude, dentro do qual o Islã abraçava o todo da sociedade e da natureza. Essa latitude aparecia em nível social como tolerância. Havia espaço o bastante, até para tais grupos marginais como dervixes loucos andarilhos. O próprio sufismo – ou pelo menos sua ortodoxia austera e seu aspecto "sóbrio" – ocupava uma posição central no discurso cultural. "Todo mundo" entendia a viagem intencional pela analogia com a chuva de granizo – todos entendiam os dervixes, mesmo que os disaprovassem.

Hoje em dia, entretanto, o Islã vê a si mesmo com um mundo parcial, cercado de infiéis e hostilidade e sofrendo rupturas internas de toda sorte. Desde o século 19 o Islã perdeu sua consciência global e o senso de sua própria vastidão e completude. Por isso o Islã não pode mais achar facilmente um lugar para todo indivíduo e grupo marginalizado, em um padrão de tolerância e ordem social. Os dervixes agora aparecem como uma diferença intolerável na sociedade. Todo muçulmano deve agora ser o mesmo, unido contra todos os forasteiros e gerados do mesmo protóripo. Claro que os muçulmanos sempre "imitaram" o Profeta e viram Sua imagem como a norma – e isso agiu como uma poderosa força unificadora para o estilo e substância dentro do Dar al-Islam. Mas "hoje em dia" os puritanos e reformadores esqueceram que essa "imitação" não foi dirigida apenas a um mercador do início da Idade Média chamado Maomé, mas também ao insan al-kamil (o "Homem Perfeito" ou "Humano Universal"), um ideal de inclusão mais que de exclusão, um ideal de cultura integral, não uma atitude de pureza em perigo, não uma xenofobia disfarçada de piedade, não o totalitarismo, não a reação.

O dervixe é perseguido hoje em dia na maior parte do mundo islâmico. O Puritanismo sempre abraçou os aspectos mais atrozes do modernismo em sua crusada de despir a Fé de "adesões medievais" como o sufismo popular. E certamente o caminho do dervixe andarilho não pode prosperar em um mundo de aviões e poços de petróleo, de hostilidades nacionalistas/chauvinistas (e por isso de fronteiras impenetráveis), e do puritanismo que suspeita de toda diferença como de uma ameaça. Esse puritanismo triumfou não só no Leste, mas bem perto de casa também. Ele é visto no "tempo da disciplina" do capitalismo-muito-tardio moderno, e na rigidez porosa da hiperconformidade consumista, e também na reação hipócrita e na histeria sexual da "Direita Cristã". Onde, em tudo isso, podemos encontrar espaço para a poética (e parasitária!) vida da Perambulação Sem Rumo – a vida de Chuang Tzu (que cunhou esse slogan) e seus frutos taoístas – a vida de São Francisco e seus devotos descalços – a vida de (por exemplo) Nur All Shah Isfahani, um poeta sufi do século 19 que foi executado no Irã pela horrível heresia do dervixismo andarilho?

Aqui está o outro lado do "problema do turismo": – o problema do deparecimento da "perambulação sem rumo". Possivelmente os dois estão diretamente relacionados, de modo que quanto mais o turismo se torna possível, mais o dervixismo se torna impossível. Na verdade, podemos muito bem perguntar se esse pequeno ensaio sobre a deliciosa vida dos dervixes possui o menor traço de relevância no mundo contemporâneo. Poderá esse conhecimento nos ajudar a superar o turismo, mesmo dentro da nossa própria conciência e vida? Ou é meramente um exercício de nostalgia por posibilidades perdidas – uma indulgência fútil de romantismo?

Bem, sim e não. Claro, eu confesso que sou romântico sem cura sobre a forma da vida dervixe, ao ponto de que por um tempo eu virei minhas costas ao mundo cotidiano e a segui eu mesmo. Porque claro, ela não desapareceu realmente. Decadente sim – mas não desaparecida para sempre. O pouco que eu sei cobre viagens aprendi naqueles poucos anos – tenho um débito com as "adesões medievais" que nunca conseguirei pagar – e eu nunca vou me arrepender do meu "escapismo" por um momento sequer. MAS – eu não considero a forma do dervixismocomo a resposta para o "problema do turismo". A forma perdeu sua eficácia. Não há sentido em tentar "preservá-la" (como se fosse um picles, ou um espécime de laboratório) – não há nada tão patético quanto a mera "sobrevivência".

Mas: por baixo das charmosas formas exteriores do dervixismo está a matriz conceitual, por assim dizer, que nós chamamos de viagem intencional. Nesse ponto nós não deveríamos sofrer nenhuma vergonha da "nostalgia". Nós nós perguntamos se nós queremos e vamos superar "o turista interior", a falsa consciência que nós separa da experiência dos sinais da Grande Terra. O caminho do dervixe (ou do taoísta, ou do franciscano, etc.) nos interessa – finalmente – não só na medida que pode nos prover com uma chave – não A chave, talvez – mas... uma chave. E claro – ele provê.

Uma chave fundamental para o sucesso na Viagem é, claro, a atenção. Nós chamamos de "paying attention" em inglês e "prêter attention" em francês (em árabe, contudo, dá-se atenção), sugerindo que somos tão avaros com nossa atenção quanto somos com nosso dinheiro. Muito frequentemente parece que ninguém está "prestando atenção", que todo mundo está poupando sua consciência – o quê? poupando pros tempos difíceis? – e jogando água nos fogos de conhecimento por medo de todo o combustível disponível seja consumido em um único holocausto de saber intolerável.

Esse modelo de consciência parece suspeitamente "capitalista", contudo – como se de fato nossa atenção fosse um recurso limitado, que uma vez esgotado fosse irrecuperável para sempre. Uma usura de percepção agora aparece: – cobramos juros no nosso pagamento-de-atenção, como se ela fosse um empréstimo mais que um gasto. Ou como se nossa consciência fosse ameaçada por um entrópico "heat-death", contra o qual a melhor defesa deve consistir em um desinteressante estado hipnótico de meia-atenção hesitante – uma miséria de recursos psíquicos – uma recusa de perceber o inesperado ou e saborear a miraculosidade do ordinário – uma falta de generosidade.
Mas e se nós tratássemos nossas percepções como presentes em vez de pagamentos? E se nós déssemos nossa atenção em vez de pagá-la (paying it)? De acordo com a nova lei da reciprocidade, o presente é retribuído com um presente – não há gasto, nem falta, nem débito de capital, nem penúria, nem punição por dar nossa atenção e nem fim para a potencialidade da atenção.

Nossa consciência não é uma mercadoria, nem é um acordo contratual entre o ego cartesiano e o abismo do Nada, nem é simplesmente uma funçãode alguma máquina de carne com uma garantia limitada. Verdade, eventualmente nós nos desgastamos e quebramos. Em um certo sentido a poupança das nossas energias faz sentido – nós nos "poupamos" para os momentos realmente importantes, as descobertas, as "experiências de pico".

Mas se nós vermos a nós mesmos como bolsas de moeda vazias – se nós bloquearmos as "portas da percepção" como camponeses amedrontados pelos uivos de lobos boreais – se nós nunca "prestarmos atenção" – como iremos reconhecer a proximidade e o advento desses momentos preciosos, dessas aberturas? Nós precisamos de um modelo de cognição que enfatize a "mágica" da reciprocidade: – dar atenção é receber atenção, como se o universo de alguma maneira misteriosa retribuísse nossa cognição com um influxo de graça natural. Se nós nos convencêssemos que a atenção segue uma regra de "sinergia" mais que uma lei de investimento, nós poderíamos começar a superar em nós mesmo a banal mundanidade da desatenção cotidiana, e a abrir nós mesmos a "estados mais elevados".

Em qualquer caso, permanece um fato que a não ser que aprendamos a cultivar tais estados, a viagem nunca vai significar mais que turismo. E para aqueles de nós que ainda não são adeptos da viagem Zen, o cultivo desses estados demanda de fato um gasto inicial de energia. Nós temos inibições a reprimir, hesitações a conquistar, hábitos de introversão e apego aos livros a quebrar, ansiedades a sublimar. Nossa consciência caseira de terceira classe parece segura e aconchegante comparada com os perigos e desconfortos da Estrada, com sua novidade eterna, sua constante demanda pela nossa atenção. O "medo da liberdade" envenena nosso inconsciente, apesar de nosso consciente desejo por liberdade na viagem. A arte que estamos procurando raramente ocorre como um talento natural. Ela deve ser cultivada – praticada – aperfeiçoada. Nós devemos conjurar a vontade da viagem intencional.

É um truísmo reclamar que a diferença está desaparecendo do mundo – e é verdade, também. Mas algumas vezes é incrível descobrir o quão auto-regenerativo e orgânico o diferente pode ser. Mesmo na América, terra dos shoppings e tvs, diferenças regionais não apenas sobrevivem mas sofrem mutações e prosperam nos interstícios, nas fissuras que zigue-zagueiam no monolito, por baixo da atenção do Olhar da Mídia, invisível até para a burguesia local. Se todo o mundo está se tornando unidimensional, nós precisamos olhar entre as dimensões.

Eu penso na viagem como fractal em sua natureza. Ela tem lugar fora do mapa-como-texto, fora do consenso oficial, como aqueles padrões escondidos e encravados que se aninham dentro das infinitas bifurcações das equações não-lineares, no estranho mundo da matemática do caos. Em verdade o mundo não foi completamente mapeado, porque as pessoas e suas vidas cotidianas foram excluídas do mapa, ou tratadas como "estatísticasa sem rosto", ou esquecidas. Nas dimensões fractais da realidade não-oficial todos os seres humanos – e até vários grandes lugares – continuam únicos e diferentes. "Puros" e "não corrompidos"? Talvez não. Talvez ninguém e lugar nenhum já tenham sido realmente puros. A pureza é um fogo-fátuo, e talvez até uma forma perigosa de totalitarismo. A vida é gloriosamente impura. A vida erra.

Nos anos 50 do século 20 os situacionistas franceses desenvolveram uma técnica para viagem que chamam de derive, a "errância". Eles estavam enojados consigo mesmos por nunca deixarem a rotina usual e os caminhos de suas vidas dirigidas pelo hábito; eles perceberam que nunca haviam visto Paris. Começaram a desenvolver expedições aleatórias e sem estrutura pela cidade, caminhando durante o dia, bebendo à noite, abrindo seus próprios mundinhos rígidos para uma terra incognita de favelas, subúrbios, jardins e aventuras. Eles se transformaram em versões revolucionárias do famoso flaneur de Baudelaire, o caminhante ocioso, o sujeito desterrado do capitalismo urbano. A perambulação sem rumo deles virou uma prática de insurreição.

E agora, alguma coisa permanece possível – perambulação sem rumo, a errância sagrada. A viagem não pode ser confinada ao permissível (e agonizante) olhar do turista, para quem o mundo inteiro é inerte, um caroço de pitoresquidade, esperando para ser consumido – porque toda a questão da permissão é uma ilusão. Nós podemos emitir nossos próprios vistos de viagem. Nós podemos nos permitir participar, experimentar o mundo como uma relação viva e não como um parque temático. Nós carregamos dentro de nós mesmos os corações de viajantes, e não precisamos de experts para definir nossas complexidades mais que fractais, para "itnerpretar" por nós, para mediar nossas experiências por nós, para nos vender de volta as imagens de nossos desejos.

A errância sagrada é renascida. Mantenha-na secreta.

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A imagem acima foi reproduzida de uma página com fotos de peregrinações ao monte Kailash

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