terça-feira, 6 de maio de 2008

O Peregrino Russo



por Jean Gauvain

Foi na Biblioteca das Línguas Orientais, em Paris, que eu descobri este livro, graças a uma pequena nota de Nicolas Berdiaev. Apesar da pressa por causa do período de exames, eu não larguei dele até à noite. De fato, mais que muitos romances, estudos e ensaios, ele revela o mistério do povo russo naquilo que há de mais secreto: suas crenças e sua fé.

Não é de espantar a obscuridade em que permaneceram os Relatos de um Peregrino quando se pensa em que condições foram publicados. Apareceram pela primeira vez em Kazan, por volta de 1865, sob uma forma primitiva, com muitos erros. Foi somente em 1884 que se estabeleceu uma edição correta e acessível. Em pleno movimento socialista e naturalista, essa edição não poderia ter muita repercussão.

Somente após 1920, quando o coração de certos emigrados russos sentiu a nostalgia da pátria, surgiu a necessidade de uma nova edição. O livro foi reimpresso por iniciativa do professor Vycheslavtsev[4] . A presente tradução foi feita a partir desse texto.

Os Relatos foram publicados sem nome do autor. De acordo com o prefácio da edição de 1884, o
padre Paísius, abade do mosteiro de São Miguel Arcanjo, em Kazan, teria copiado o texto de um monge russo de Athos, cujo nome ignoramos. Numerosos indícios nos fazem crer que os relatos foram redigidos por um religioso depois de suas entrevistas com o peregrino. Esta hipótese, porém, não afeta o caráter de autenticidade do livro. O peregrino, simples camponês de trinta e três anos, só está familiarizado com o estilo oral. A redação de suas aventuras lhe teria custado imensos esforços; expressões convencionais teriam substituído a linguagem arcaica e simples que faz o encanto de seus relatos.

Por outro lado, um confidente inteligente terá podido reencontrar exatamente o tom do peregrino e transmitir ao leitor as suas palavras. Muitos místicos só comunicaram sua experiência espiritual com a ajuda de um cronista, cuja suprema arte consiste em apagar-se diante dos mistérios que revela. Este personagem talvez seja o eremita de Athos, ou talvez ainda o padre Ambrósio, o grande solitário de Optina — mestre de Ivan Kireevski, amigo de Dostoievsk, de Tolstoi e Leontiev — em cujos manuscritos foram encontrados três outros relatos [5] de tom mais didático, publicados em 1911.

Os Relatos estariam assim relacionados ao movimento literário russo do século XIX, naquilo que tem de mais sereno e puro. Em meio ao tumulto dos escritos poéticos, romanescos, revolucionários, em que se chocam com violência as tendências radicais do caráter russo, faltava essa nota inocente e cristalina que é, sem dúvida, a tônica secreta.

O peregrino faz o leitor penetrar no coração da vida russa, pouco depois da guerra da Criméia e antes da abolição da escravatura, ou seja, entre 1856 e 1861. Por ele passam todos os personagens do romance russo: o príncipe que procura expiar sua vida dissipada, o chefe do correio, beberrão e briguento, o escrivão da província, incrédulo e liberal. Os forçados partem, em penosas etapas, para a Sibéria; os correios imperiais extenuam seus cavalos na planície imensa; os desertores rondam pelas florestas longínquas; nobres, camponeses, funcionários, membros das seitas, professores e padres, toda essa antiga Rússia de estrutura rural ressuscita com seus defeitos — dos quais a embriaguez não é certamente o menor — e suas qualidades, entre as quais a mais bela é a caridade, o amor espiritual ao próximo, iluminado pelo amor de Deus.

Ao redor, é a terra russa, planície imensa a perder de vista, florestas desertas, hospedarias à beira das estradas, igrejas pintadinhas de novo, com sinos que cintilam. Entretanto, o camponês não se detém jamais para descrever as aparências sensíveis. Cristão ortodoxo, ele está à procura da perfeição, sua única preocupação é o absoluto.

Para guiá-lo em sua busca, o peregrino tem apenas dois livros: a Bíblia e uma coletânea de textos patrísticos, a Filocalia. Este nome é o único meio de se definir a escola à qual ele está ligado. Russo do século XIX, ele é um hesicasta (de ºFLP4": palavra que significa: calma, silêncio, contemplação).

O hesicasmo remonta aos primeiros séculos cristãos. Tem suas origens no Monte Sinai e no deserto do Egito. Na Igreja Oriental, aparece como a corrente mística que se opõe à tradição puramente ascética, originária de São Basílio, que dominou por muito tempo, após a condenação da doutrina de Orígenes nos séculos V e VI.

A mística oriental, inspirada em Orígenes e Gregório de Nisa [6], atribui à alma humana, como sua finalidade, a deificação. A natureza humana é boa, mas deformada pelo pecado. O caminho da salvação consiste em devolvê-la à sua virtude primitiva, restabelecer no homem — que é a imagem de Deus — a semelhança divina, obra da graça. Sob a ação da graça, o espírito — libertado das paixões pela ascese — se eleva para contemplar as razões das coisas criadas e chega, às vezes, até a chamada "nuvem luminosa": a contemplação obscura da Santíssima Trindade.

Tal é a meta à qual se consagram os solitários e os grandes místicos dos dez primeiros séculos do
cristianismo. Para fixar o espírito nas realidades invisíveis, alguns deles foram levados a adotar processos técnicos como a repetição freqüente de uma curta oração: o Kyrie Eleison
[7]. Os católicos, que estão familiarizados com a recitação do terço, não se admirariam por isso. A idéia de uma participação do corpo na vida espiritual, que está ligada ao dogma da ressurreição futura, é em si mesma profundamente ortodoxa. Foi assim que, pouco a pouco, se desenvolveu, através de controvérsias acirradas, a doutrina que será qualificada como hesicasmo.

A partir do século XI, essa doutrina tende a corromper-se. Sob a influência indireta de São Simeão, o Novo Teólogo, um valor exagerado é atribuído às visões e revelações sensíveis. Ninguém poderá ser considerado cristão se não tiver conhecido e experimentado concretamente a graça. Esta é uma teologia inquietante, à qual se opõem as palavras de Joana d'Arc aos doutores que lhe perguntavam se ela estava em estado de graça: — Se não estou, que Deus nele me coloque e, se nele estou, que Deus nele me conservei Além disso, o cristão não pode ir sem perigo. A ação de Deus na alma é essencialmente misteriosa, "transpsicológica", para retomar a expressão de Stolz[8].

A procura das iluminações, com efeito, leva a desprezar a prática ascética e a buscar meios considerados mais eficazes para chegar às visões. Trata-se do perigo do "meio curto" e do quietismo, onde a alma se arrisca a ser fulminada. Por uma evolução paralela, dá-se uma atenção demasiada aos processos corporais, à postura do corpo, ao papel do coração na oração. O hesicasta do século XIV, que espera chegar à salvação "sem esforço e sem dor", esquece que, na vida espiritual, tudo é graça e que ninguém pode dizer: Jesus é Senhor, a não ser no Espírito Santo (1 Cor 12,3).

É essa doutrina que, apesar das controvérsias do século XIV, é transmitida à Rússia pelo staretz ou monge Nil Sorski (1433-1508), uma das figuras mais puras do monaquismo russo, aquele que queria proibir aos conventos a posse de bens materiais. Ela caiu no esquecimento, mas foi restaurada por um outro monge, Paísius Velitchkovski, no fim do século XVIII. Os textos hesicastas, que ele reúne e publica em 1794, vão guiar os solitários e os místicos russos do século XIX.

Comprometido na monótona cadeia de gerações, o peregrino encontra a doutrina do hesicasmo tal qual a deformaram os longos séculos de história. Mas sua espiritualidade é pura. Se, por momentos, ele parece acreditar que a prática da oração basta para levá-lo a conhecer "como o Senhor é bom", seu amor de Deus é grande demais para não ser de origem sobrenatural. O ascetismo quase espontâneo da sua vida não deixa também de servir-lhe de guarda. Andando sempre de um lugar para outro, não tendo sequer uma pedra onde repousar a cabeça, a oração perpétua é para ele, antes de tudo, um meio para fixar a atenção sobre o mistério da fé e fazer a alma voltar-se para si mesma. Seu espírito permanece sempre ativo e sua fé é iluminada por uma busca ardente e sincera.

A fé do peregrino não é uma respeitosa emoção diante de mistérios de poesia, ela se alimenta de
ensinamentos teológicos. Aos que se lhe dirigem, oferece conselhos técnicos e explicações da doutrina, e não exortações generosas e vagas. Conhecendo o homem à luz de Deus, ele conhece também seu lugar e seu papel no universo.

A moral do peregrino não é um conjunto de regras que um dia aprendeu. Não é também apenas uma higiene interior. Todas as suas ações são orientadas pelo desejo de perfeição espiritual. O ascetismo é condição de contemplação. Não tem sentido em si mesmo. Assim, a vida espiritual retoma sua unidade. Da fé procedem as obras, mas, sem as obras não há fé. Vindo do mundo da queda, da ignorância e da fraqueza, o peregrino caminha para a nova Jerusalém, na qual entrará por inteiro, corpo e alma, na consumação dos séculos. Reunindo todas as forças de seu espírito para contemplar o Ser Absoluto, ele recebe, às vezes, de Cristo, o novo Adão, alguns dos privilégios do primeiro Adão. Ele chega a ignorar o frio, a fome, a dor; até a própria natureza lhe parece transfigurada:

"Árvores, ervas, pássaros, terra, ar, luz, tudo me dizia que tudo existe para o homem, que tudo testemunha o amor de Deus pelo homem, tudo reza, tudo canta a glória de Deus".

Esse otimismo que liberta não é um privilegio cristão. É a tendência profunda do cristianismo. Que a criação seja boa e que, depois da queda, ela deva ser englobada inteiramente na via da salvação, disto Santo Agostinho e, depois dele, os grandes doutores medievais, não duvidam mais que São Gregório de Nisa. Se a Idade Média no Ocidente está mais ligada sobretudo ao mistério do pecado e da Cruz, é porque as maravilhosas implicações da Encarnação já foram reveladas à consciência cristã pelos Padres da Igreja. Foram somente as crises e as rupturas do mundo moderno que obscureceram esse senso "cósmico" da teologia patrística, sem o qual não se pode compreender o pensamento dos grandes doutores do Ocidente.

É a essas perspectivas tão amplas que o peregrino pode levar aqueles que o escutam com sinceridade. Será isso roubar-lhe seu caráter russo? De maneira alguma, ao contrário. Pois ele é um perfeito tipo da piedade russa. Esta não formou uma escola de pensamento, uma doutrina própria. Como um ícone de Novgorod, de cores vivas e fortes, que renova os modelos recebidos de Bizâncio, a piedade russa deu, às doutrinas do Oriente cristão, um tom original e novo.

O senso inato do mistério do homem, a compaixão, a piedade diante da dor e do pecado, a simplicidade de coração que purifica espontaneamente as doutrinas da Idade Média bizantina, a imitação direta e a quase mímica da vida de Cristo e das verdades evangélicas — tais são os traços fundamentais da piedade russa.

Existe assim na Rússia um imenso potencial religioso, uma poderosa força popular que não chegou a exprimir-se em uma doutrina própria. Até ao século XIX não existe uma teologia russa: tudo é traduzido, decalcado do grego ou, secundariamente, do latim. Com exceção talvez da Idade Média russa, a fusão, a síntese entre o pensamento religioso e a corrente da piedade popular só aconteceu em casos individuais, de que o peregrino é um exemplo. Na vida da Igreja, essa ausência de unidade confere à idéia religiosa russa seu caráter trágico, fonte de crises violentas. Abandonada a si mesma, a Igreja russa logo veio a conhecer a ingerência do Estado. Por falta de apoio, ela sucumbiu, o cisma despedaçou-a, ela se desfez pouco a pouco. Nas florestas em que se erguera a meditação solitária de Nil Sorski, acendem-se no século XVII as trágicas fogueiras dos Velhos-Crentes. A torça espiritual se refugia nos eremitérios, nos monastérios junto aos monges; ela se irradia às vezes para o povo, mas a unidade orgânica está esfacelada. Os gigantescos esforços dos leigos para criar, no século XVIII, uma doutrina religiosa russa, se apóiam apenas em uma realidade difusa, falta-lhes solidez e permanecem isolados. De certo a alma russa permanece sobretudo religiosa. Mas à fé sucede a religiosidade sobre a qual nascem terríveis abscessos de fanatismo obscuro, de niilismo total, de ateísmo militante, potência das trevas!

Voltado para o absoluto, por uma misteriosa vocação, o povo russo — como todos os povos da
Europa — falhou à sua missão histórica, a de uma civilização progressivamente impregnada pela
Verdade, em um equilíbrio ativo entre os abismos do pecado e a infinita graça divina. A visão de uma Rússia que reconciliaria o Oriente com o Ocidente, por um instante entrevista por Soloviev, parece ter desaparecido para sempre. Mas um bem infinito pode nascer de um mal radical. É no temor e no tremor que se prepara a ressurreição.

"Chora, chora, povo miserável", canta o Inocente de Mussorgski, esse irmão do peregrino, "chora, povo faminto, Deus terá pena de ti".

Genebra, Festa da Ressurreição do Senhor, 25 de abril de 1943

***

A invocação do nome de Jesus de acorod com a fórmula "Senhor Jesus Cristo tende piedade de mim um pecador" (freqüentemente conhecida como "a Prece de Jesus" - Kyrie Eleison) tem desempenhado um papel central na vida espiritual do Oriente Cristão. A prática da oração (euche) e os efeitos que tem sobre os crentes têm sido descritos em muitos textos e tratados por séculos, notadamente na Philokalia. Entretanto, o poder da oração para efetivar uma transformação interior (e mesmo exterior) é melhor conhecido através de uma coleção popular de estórias sobre um peregrino anônimo da Rússia do século XIX, intitulado O Relato do Peregrino, ou O Caminho do Peregrino.

Pesquisas recentes esclarecem que história deste texto, que foi bem conhecido na Rússia até a década de 1880 e foi traduzido em muitos outras línguas européias no século XX. O núcleo das quatro estórias originais sobre o peregrino foi composto por volta de 1859 pelo Padre Mikhail Kozlov (1826-1884), nesta época monge em Athos e mais tarde missionário na Sibéria. A primeira edição foi publicada em 1881 por Paisii Federov. Edições posteriores adicionaram três novas estorias e muitas camadas ao texto., à maneira típica da literatura espiritual russa. O caráter relaxado da narrativa da obra torna difícil dar um sentido a sua atração e poder através de excertos.

***
O fragmento acima é de Bernard McGinn, e pertence a uma coletânea sobre a história do Peregrino Russo. A Introdução de Jean Gauvain também pertence à mesma referência.

No endereço da coletânea podem ser encontradas várias edições do livro do Peregrino, em português e espanhol.

A imagem acima pertence a Russia - The Story of a Russian Pilgrim.

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